Pela primeira vez na história da medicina, uma pessoa que nasceu sem língua teve suas sequelas tratadas. A equipe responsável pelo caso é da UnB.

Há 16 anos, um raríssimo e complexo caso na Medicina impressionou e sensibilizou Frederico Salles, um experiente cirurgião-dentista especialista em intervenções maxilares e faciais: um caso de aglossia congênita isolada – ausência total da língua. A anomalia é tão incomum que a literatura médico-odontológica relatou somente três ocorrências em todo mundo. Graças a uma inédita intervenção cirúrgica e um sistemático acompanhamento que vêm sendo oferecido por uma equipe multidisciplinar da UnB, Auristela Viana da Silva – atualmente com 22 anos – hoje se alimenta bem, fala corretamente e leva uma vida normal, cursando, inclusive, Enfermagem na Faculdade de Ciência da Saúde do GDF. Para discutir a abordagem metodológica adotada no Brasil e nos Estados Unidos para tratamento dessas sequelas, a UnB sedia, nesta segunda-feira, 14, simpósio reunindo especialistas e as duas únicas pacientes vivas de que se têm notícia no mundo. O evento será no Auditório da Reitoria da UnB, às 16h.


Foi em 1996 que Frederico Salles, à época responsável pelo setor de cirurgia bucomaxilar de um hospital de Brasília, teve conhecimento do caso, ao receber em seu consultório a pequena Auristela da Silva, então com cinco anos. Após realizar todos os exames e confirmar o diagnóstico, passou a pesquisar toda a literatura médica associada ao assunto, para alcançar uma solução que a curasse das sequelas provocadas pela ausência da língua e que lhe conferisse condições de qualidade de vida. Por não conseguir se alimentar direito, a menina se encontrava em um quadro de desnutrição, além de apresentar feridas ao redor da boca, por incontinência salivar, e ainda sofrer graves problemas de dicção, mal conseguindo pronunciar palavras inteiras.


Com o propósito de alterar a anatomia da mandíbula e ajustar o maxilar para assegurar o desenvolvimento dos ossos no formato adequado – “que se apresentava pontiaguda, em forma de V” – Salles fez um orçamento de um distrator ostiogênico, aparelho de indução do crescimento ósseo que precisaria ser importado para o Brasil, mas a direção do hospital alegou que o instrumento apresentava um valor demasiadamente alto, não compensando o investimento. 

Frustrado com a não possibilidade da intervenção naquele momento, o cirurgião prosseguiu com suas pesquisas em torno do caso. Em 2001, já em sua clínica, e graças à sua disposição pessoal para assumir o caso, Auristela, cuja família era de origem humilde, pôde ser submetida à cirurgia especialmente idealizada para ela. A partir da doação de voluntários e de uma rifa de um rádio feita pela mãe da menina, o aparelho foi adquirido e a intervenção realizada.


ENFOQUE MULTIDISCIPLINAR - “Diante da raridade e complexidade da anomalia, e todo comprometimento decorrente da ausência da língua, concluí que só alcançaríamos sucesso se uma equipe multidisciplinar encampasse o tratamento”, contou. Após duas cirurgias, que resultaram em uma expansão maxilar de 20 milímetros, na qual a mandíbula, que assumia a forma de “bico de pássaro”, pôde ser redesenhada. A partir disso, professores de diversas áreas da UnB assumiram as terapias da fala, psicológica, ortodôntica e nutricional - acompanhamento conduzido até hoje. Coordenado por Frederico Salles, o grupo multidisciplinar é constituído pelos seguintes pesquisadores da Universidade: Jorge Faber, da Faculdade de Odontologia da UnB; Elizabeth Queiroz, da Psicologia; Maria Lúcia Torres, fonoaudióloga ligada ao Núcleo de Estudos em Educação e Promoção da Saúde; e Marcos Anchieta, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Engenharia Biomédica. A professora de Nutrição da Universidade Católica de Brasília (UCB) também integra a equipe.


“É a primeira vez que se fala em protocolo para tratamento de sequelas de aglossia. Instituímos isso”. A intervenção conjunta e compartilhada dos especialistas resultou em outro procedimento inédito: o teste de percepção gustativa. “Atestamos que nossa paciente sente todos os sabores, incluindo os parâmetros doce, salgado, azedo e amargo, ou seja, deduzimos que essa percepção não está associada , de modo irrestrito, à língua”, relatou, aproveitando para contar que outros adolescentes da mesma idade foram submetidos ao mesmo teste, com propósito comparativo.


TROCA DE EXPERIÊNCIAS – Com o sucesso da terapia, o caso ganhou repercussão internacional após a publicação de artigo científico de autoria de Salles e sua equipe de colaboradores na revista Oral Surgery, Oral Medicine, Oral Pathology, Oral Radiolology and Endodontology – um dos periódicos de odontologia mais importantes do mundo. Tal publicação levou a professora Bethy Mcmicken, da Universidade Estadual da Califórnia, a entrar em contato com o cirurgião e propor uma troca de experiências, por já tratar de uma paciente com o mesmo diagnóstico. A americana Kelly Rogers é hoje assistente da professora, mestre e PHD em Fonoaudiologia na mesma instituição.


O episódio científico vem despertando o interesse de especialistas em todo mundo. Em 2011, a bem-sucedida experiência cirúrgica, acompanhada do exitoso tratamento terapêutico, foi apresentado no EPS Hohhot International Paediatric Conference, na China. Na ocasião, Salles levou à plateia de especialistas um vídeo gravado com a própria Auristela, a qual saudou, em mandarim, os interessados em seu caso.


O simpósio motivado pela ousada e inovadora terapia conduzida pelo grupo multidisciplinar também irá apresentar o tratamento de outras deformidades do esqueleto facial - anomalias que também comprometem a vida social de inúmeras pessoas. "É comovente ajudar efetivamente as pessoas, transformar suas vidas. E isso está a nosso alcance", afirma, orgulhoso, Frederico Salles.

 

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