Receita inédita substitui trigo por farinha de banana verde. Produto é mais saudável e barato.

O pesadelo começou em 1999, aos dois anos de idade. Keicy Lopes da Silva, hoje com 12 anos, sentia fortes dores na barriga. Foi a vários hospitais, fez radiografias, exames e lavagens estomacais inúmeras vezes, mas o problema persistia. Apenas em 2005, veio o diagnóstico correto: a menina é celíaca. A doença é de intolerância permanente ao consumo do glúten, proteína presente em alimentos como farinha de trigo, aveia, cevada e centeio. Desde então, ela mantém uma dieta rígida. Nenhum alimento que contém glúten entra no cardápio. Nada de pão, massas, bolos, salgadinhos e doces comuns.


Seguir o tratamento à risca não é tarefa fácil. Para dar uma pitada de sabor e saúde à vida dos celíacos, pesquisadora da Universidade de Brasília criou receita inédita de macarrão sem glúten, substituindo a farinha de trigo por farinha de banana verde. O produto custa três vezes menos do que o macarrão para celíacos vendido nos supermercados e pode ser fabricado em casa. Além disso, pode ser consumido por toda a população, é mais nutritivo e tem menor valor calórico.


O macarrão foi desenvolvido durante a pesquisa de doutorado Massa de banana verde: uma alternativa para a exclusão do glúten. A nutricionista Renata Zandonadi, autora do projeto, faz parte do Grupo de Pesquisa em Qualidade Nutricional da UnB e se interessa pela doença celíaca desde a graduação. Em 2006, ela defendeu dissertação de mestrado na área, trabalhando com a fibra Psyllium, que substitui o glúten. A tese foi sobre o macarrão foi apresentada em março de 2009.


INOVAÇÃO -
A polpa de banana verde foi cozida, triturada e desidratada para gerar a farinha. O produto foi analisado em laboratório antes de o macarrão ser desenvolvido. Três receitas foram testadas: macarrão de farinha de banana verde puro, o ingrediente associado à farinha de arroz, e outra receita com a farinha de banana associada à fécula de batata.


As três tentativas tiveram sucesso. O macarrão, do tipo fettucine, com farinha de banana verde apresentou uma redução de lipídios de 98%, mais fibras e uma redução de 8,5% do valor energético total, se comparado ao macarrão integral vendido em supermercado. Além disso, a banana verde possui amido resistente, uma substância que auxilia na redução de colesterol, promove mais saciedade e regulação do índice glicêmico. “É rico em fibras, vitaminas e minerais. Houve uma melhora nutricional e, principalmente, redução de gordura”, diz Renata.


O alimento passou por teste químico, teste tecnológico e análise sensorial. A pesquisadora observou as características da massa e da farinha, a viscosidade e o tempo de cozimento. A receita foi avaliada por 25 celíacos e 50 pessoas não portadoras da doença. O grupo não percebeu diferenças na aparência, aroma, sabor, textura e qualidade do produto em relação ao macarrão tradicional. O trabalho está em processo de patente.


O estudo de Renata também é ecologicamente correto. Durante o processo de colheita e comercialização, os cachos apresentam vários níveis de maturação e as bananas verdes vão para o lixo. Cerca de 60% da produção é descartada em algumas regiões. “A receita tem também um impacto ambiental por reutilizar a banana que seria descartada. É um produto promissor, tem possibilidade de boa aceitação no mercado”, ressalta a pesquisadora.


VALOR SOCIAL –
Os produtos sem glúten são caros. Um pacote de 500g de macarrão de arroz ou fécula de batata custa entre R$ 4 e R$ 20. Já 100g do produto criado, custou R$ 0,52. “Temos uma grande necessidade de ter dietas e produtos alternativos para os celíacos. Só 47% deles conseguem aderir à dieta. A grande queixa é a pouca opção de alimentos”, diz Lenora Gandolfe, professora da Faculdade de Medicina e coordenadora do projeto de extensão Centro de Diagnóstico de Tratamento e Apoio aos Pacientes Celíacos do Distrito Federal.


Calcula-se que 30 mil sejam portadoras da doença em Brasília. Muitas não têm conhecimento, pois o diagnóstico é difícil, já que os sintomas estão associados a várias outras doenças. Segundo o professor Riccardo Pratesi, orientador do doutorado de Renata, a doença celíaca precisa ser divulgada. “É uma doença muito delicada, apesar do tratamento ser aparentemente fácil, manter na prática uma dieta sem glúten é complicado”, afirma.


VIDA DE CELÍACO –
Keicy Lopes da Silva não pode lanchar na escola, nas festas de aniversário dos amigos, nem em estabelecimentos comerciais. Certa vez, em uma sorveteria para diabéticos, ela perguntou: “moça, esse sorvete tem glúten?”. A atendente respondeu: “não, aqui é tudo diet”. A menina é disciplinada e acostumou-se com o cardápio especial. Para ela, o pior é o desconhecimento sobre a doença. “O preconceito das pessoas me incomoda mais que a dieta. Já disseram que eu sou fresca”, conta.


Toda a alimentação da menina é preparada pela mãe, a servidora pública Rita Lopes da Silva. Se for a uma festinha, Rita descobre o cardápio e inventa receitas, prepara quitutes semelhantes, que a filha leva em uma lancheira. Keicy não entra em padarias, não pode sequer sentir cheiro de pão, pois ela se contamina com glúten por inalação. “Minha filha tem consciência da doença e é bem disciplinada. Ela já sofreu muito e sabe dos riscos”, diz Rita.


O macarrão desenvolvido na UnB amplia a alimentação da menina. Keicy gostou de poder enrolar o macarrão no garfo e sugá-lo, como nos desenhos infantis. “É muito gostoso, senti que é mais leve, consistente e temperado. O outro é muito frágil, se rompe com facilidade”, diz Keicy.