Negros estadunidenses procuram no estado cultura de seus antepassados, mas ignoram o lado sofrido da escravidão brasileira, diz pesquisa.

A Bahia é um dos principais destinos turísticos, depois da África, para afro-americanos curiosos sobre a história dos seus antepassados. Todos os anos milhares de turistas da classe média negra dos Estados Unidos vão ao estado em busca de um passado cultural perdido. Patrícia Pinho, cientista social brasileira da University at Albany, no estado de Nova Iorque, pesquisa o fenômeno ainda pouco conhecido entre os brasileiros e está concluindo livro sobre o assunto. A pesquisadora apresentou conclusões preliminares do estudo no Seminário Internacional Etnicidade, Racialidade e Diversidade nas Américas do Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas (Ceppac).


A pesquisa mostra que a Bahia é vista por esses turistas como um museu vivo, onde as tradições perdidas de seus antepassados estão preservadas. Patrícia conclui que a tentativa dos visitantes de enfatizarem as semelhanças com os afro-descendentes baianos mascaram, na verdade, uma noção de superioridade dos visitantes em relação aos anfitriões.


Segundo Patrícia, os turistas afro-americanos partem de uma noção de semelhança e até solidariedade com os afro-brasileiros. “Eles exigem que os guias turísticos sejam negros, por exemplo”, comentou. Por outro lado, argumenta a professora, esses turistas chegam ao Brasil com uma visão estereotipada dos negros e da escravidão no país. “Para eles as tradições culturais e religiosas são um exemplo vivo do passado deles que foi perdido com a escravidão”, explicou. “Ao mesmo tempo, o que se estabelece é uma relação de hierarquia: eles se vêem como mais desenvolvidos do que os brasileiros baianos”.


Outro estudo apresentado na mesa de debates do seminário também aborda a questão racial, mas analisa a trajetória de uma categoria profissional estigmatizada no país: as empregadas domésticas. O professor Joaze Bernardino, do Departamento de Sociologia da UnB, analisou como, na história das associações da categoria, elas se valeram de suas identidades como negras, mulheres e pobres para fortalecerem a luta por direitos. A cronologia apresentada pelo pesquisador mostra como elas se associaram a entidades comunistas, feministas e ligadas ao movimento negro para garantir reconhecimento legal e social. Os dois trabalhos foram debatidos pelos pesquisadores presentes no seminário, na manhã desta quarta-feira, 27 de junho.


MUSEU VIVO -
 Para entender melhor o tipo de turismo que investigou, também chamado de turismo de raiz, a pesquisadora Patrícia Pinho entrevistou turistas, guias, e realizou pesquisas de campo no estado. Também foi importante, segundo ela, a consulta a revistas americanas especializadas no público negro, como a Ebony e a Essence, e websitesde agências de turismo, todos veículos que promovem viagens do que ela chamou de turismo de raiz.


Um dos entendimentos equivocados dos turistas, que se reflete também sobre os guias locais, de acordo com a pesquisadora, é ignorar o passado de escravidão e sofrimento dos negros na Bahia. “Quando eles visitam o estado não estão procurando a história da escravidão”, explica. Segundo Patrícia, esse aspecto é muito mais vívido quando viajam para Gorée, no Senegal, ou Gana. “Do lado africano o turismo envolve muito mais sofrimento, eles se emocionam muito quando visitam os pontos de não retorno, lugares onde os escravos davam o último adeus à terra de origem”.


Para os afro-americanos, relata Patrícia, a Bahia funciona como um museu. “Eles vêem o momento histórico presente na Bahia como se fosse o passado perdido dos afro-descendentes americanos”, explica. O efeito disso na prática é que os vestígios históricos que apontam para o passado sofrido dos negros baianos – como antigas senzalas – são cortados dos roteiros turísticos. “Os próprios guias acabam evitando esses locais em favor de outros como os terreiros de candomblé”, explica.


RESISTÊNCIA -
 Ao contrário dos turistas, os movimentos das empregadas domésticas usaram bastante o passado de sofrimento dos escravos em seu discurso de luta e resistência, já que a maioria são mulheres negras e se reconhecem como descendentes de escravas e vítimas de injustiças que se perpetuam desde o período colonial. A categoria fortaleceu-se a partir de movimentos de luta negros e de classe. Joaze Bernardino, o pesquisador, lembrou que a primeira associação de empregadas domésticas, criada por Laudelina de Campos Melo, em Santos, ainda na década de 1930, desenvolvia diálogos tanto com movimentos sindicais quanto com grupos como a Frente Negra Brasileira. "O que percebemos é que no caso delas a raça não necessariamente significou desempoderamento, como geralmente acontece", diz Joaze.


No artigo escrito pelo professor e apresentado durante o debate no Ceppac, ele traça também um perfil do que é a luta política das empregadas domésticas atualmente. O sociólogo verificou que mais do que a luta pelo reconhecimento do estado, essas mulheres querem o fim de uma lógica que classifica certos grupos como humanidades inferiores, resultado da herança da escravidão que ainda persiste. “Para além da luta pelo acesso à previdência social, direito às férias, FGTS obrigatório, existe um projeto decolonial”, relatou o professor.