Estudo da Bioética mostra que médicos têm dificuldades para confirmar o diagnostico de morte encefálica e muitos desconhecem o conceito de ortotanásia.

Cometer um crime ou praticar um ato misericordioso? Este era o dilema de médicos de UTIs ouvidos em pesquisa desenvolvida pelo Programa de Pós-Graduação em Bioética da Universidade de Brasília, quando se deparavam com um paciente em fase terminal. Em dezembro do ano passado, o juiz Roberto Luis Luchi Demo, da 14ª Vara da Justiça Federal de Brasília, pôs fim à dúvida e legalizou a ortotanásia.


Embora já regulamentada por resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) de novembro de 2006, metade dos médicos entrevistados não soube definir ortotanásia. “Essa resolução diz que um paciente em fase terminal, com quadro irreversível, não deve receber suportes extraordinários que o mantenham vivo. Tanto médicos quanto a população ainda confundem com eutanásia”, explica Kátia Batista, autora do estudo Decisões Éticas na Terminalidade da Vida.


Dos 15 médicos entrevistados pela pesquisadora, 60% disseram conhecer a resolução do CFM sobre a ortotanásia, mas um pouco menos, 53,3%, acertou a definição do procedimento. A ortotanásia pode ser aplicada, por exemplo, em um paciente que está com câncer em fase terminal e que também é diagnosticado com uma infecção no pulmão. Nesse caso, o médico, junto com o paciente, pode optar por não medicá-lo com antibióticos. Na eutanásia a morte em paciente terminal é induzida pelo médico por solicitação do doente com uso de medicamentos ou omissão de procedimentos ainda importantes para o tratamento.


Entre os médicos ouvidos, dez são homens e cinco mulheres, todos entre 26 e 52 anos de idade e até 27 anos de profissão. Sobre a aplicação da ortotanásia no local de trabalho, 40% deles disseram que ela não era aplicada, 46,7% não souberam informar e 13,3% afirmaram que o procedimento é aplicado quando existe vontade de familiares e discussão com a equipe médica. Na época da realização da pesquisa, a resolução do CFM ainda não tinha sido validada.


Os médicos entrevistados, que participavam do Congresso de Intensivistas do Centro-Oeste, foram os únicos dentre 150 procurados pela pesquisadora para responder as sete perguntas do questionário. “Esperávamos no mínimo 100 contribuições. Isso limitou o trabalho", revela a professora Eliane Seidl, orientadora da pesquisa. "A pouca adesão dos médicos ao estudo demonstra a resistência em tratar sobre o assunto”, acredita. Além das entrevistas, a pesquisadora visitou, durante um mês, a UTI de um hospital público de Brasília para acompanhar a rotina do local.


MORTE ENCEFÁLICA –
 O estudo revelou ainda a incerteza sobre a morte encefálica. Dos médicos ouvidos, 60% não conseguiram definir o que é morte encefálica. Kátia alerta que a falta do diagnóstico pode provocar a distanásia, que é o prolongamento da vida de um paciente terminal. “Na dúvida sobre o diagnóstico de morte encefálica, os médicos podem manter vivo mesmo o paciente em condições irreversíveis”, afirma a pesquisadora.


Simonides Bacelar, presidente da Comissão de Ética do Hospital Universitário (HUB), acredita que praticar a distanásia é um verdadeiro crime com o paciente e com a família. “Tem médico que sabe que o doente não tem chances de cura e faz experiências com medicamentos para ver o que acontece”, revela.


Bacelar argumenta que parte da insegurança dos médicos se justifica porque muitas Unidades de Terapia Intensiva não possuem o eletroencefalograma, exame mais seguro para detectar a morte encefálica. O teste deve ser feito uma vez por dia, durante quatro dias. A cada vez que o exame der negativo confirma-se a inatividade cerebral e por consequência a morte encefálica. “É um aparelho que nem sempre é encontrado nas UTIs pelo Brasil. Sem ele não podemos, de maneira nenhuma, diagnosticar a morte encefálica”, afirma o médico.


TESTAMENTO VITAL –
 Volnei Garrafa, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética defende que o Brasil deve adotar o testamento vital, que define diretrizes médicas antecipadas. Na Itália, esse documento é conhecido como cartão verde. “Precisamos lidar melhor com esse mito da morte. O Brasil precisa de leis que não obriguem e nem proíbam, mas que ofereçam um caminho para trazer mais segurança aos médicos e a população”, afirma. Volnei acredita que os hospitais brasileiros precisam de comitês multidisciplinares de Bioética. “Na Espanha um hospital com mais de 150 leitos tem esses comitês que ajudam a tomar decisões sobre a terminalidade da vida”, conta o professor.


Volnei Garrafa lembra que quando um projeto de lei sobre o fim da vida chega ao congresso, os parlamentares não querem assumir a relatoria. “Eles fogem muito desses assuntos. Acho que com medo de perder votos ou de ser mal interpretado pela igreja. "Um deles, do ex-senador Gerson Camata está muito de acordo com a resolução do CFM", destaca.


Para aplicar a ortotanásia é preciso que o médico junto com o paciente ou a família tomem a mesma decisão. “Se alguém for contra, nada pode ser feito. Somente se for determinado por um juiz”, explica Simonides Bacelar, que ajudou a escrever o novo código de ética dos médicos, trabalha em emergências de hospitais há 40 anos e já participou de decisões sobre ortotanásia. O médico alerta que é fundamental ser honesto com a família. “A pessoa quando sofre uma lesão no cérebro e fica sem oxigênio por quatro minutos, por exemplo, é suficiente que não volte a ser a mesma. E quando voltar pode ter um comportamento semelhante ao de um bebê. Esse tipo de coisa precisa ficar bem claro”, avisa.


Outro problema é o perfil do médico que trabalha em UTI. Geralmente, esses profissionais pouco alimentam a relação médico paciente e são eles, muitas vezes, os responsáveis pelo diagnóstico de morte encefálica. “Eles trabalham em sistema de rodízio, geralmente tem mais de um emprego e passam por dificuldades para complementar o diagnóstico. A rotina é exaustiva”, aponta Kátia. A relação médico paciente também é desfavorável nas UTIs. “Como um médico que não tem envolvimento com o doente e com a família pode sugerir a aplicação da ortotanásia?”, questiona.


ORTOTANÁSIA

Resultado de pesquisa com médicos do Congresso de Intensivistas do Centro-Oeste*

 

O QUE É?**

60% conhecem resolução do CFM que autoriza o procedimento

46,7% não sabem o que é ortotanásia

 

RAZÕES MAIS CITADAS PELOS MÉDICOS

1º ausência de perspectiva de recuperação

2º irreversibilidade do quadro clínico

3º dor e sofrimento do paciente e opinião da família

 

É APLICADA?

47% não sabem informar

40% afirmam que não e 13% dizem que sim

 

O QUE IMPEDE SUA APLICAÇÃO?

5 não responderam

4 alegaram implicações legais e éticas

2 não se sentem capacitados ou seguros

2 não chegaram a consenso com sua equipe

1 teve dificuldade de diagnosticar morte encefálica

 

LEGISLAÇÃO NO MUNDO

Ortotanásia legalizada: Suécia, Inglaterra, Canadá e Japão

Eutanásia legalizada: Holanda, Austrália, Suiça, Bélgica e México

 

* Foram distribuídos 150 questiionários, só 15 foram respondidos (10 homens e 5 mulheres, entre 26 e 52 anos, de 1 a 27 anos de carreira)

** Um paciente em fase terminal, com quadro irreversível, não deve receber suportes extraordinários para manter-se vivo

 

Nota do UnBCiência
Ao contrário do afirmado na edição original desta reportagem, publicada em 11 de maio, o professor Volnei Garrafa não é médico nem trabalhou em emergências de hospitais. A frase dizia respeito ao médico Simonides Bacelar e foi atribuída erroneamente ao professor durante o processo de edição da matéria. O texto reproduzido nesta página traz as correções e inclui ainda a metodologia utilizada pela pesquisadora.