Estudo inédito em humanos aponta neurônios gabaérgicos como responsáveis pela comunicação entre músculo e cérebro durante o estímulo

kjpargeter/br.freepik.com

 

Imagine-se pedalando uma bicicleta. É esperado que seu batimento cardíaco acelere. Isso porque a musculatura ativa envia sinais ao cérebro, solicitando mais nutrientes e oxigênio. O cérebro responde com estímulos que aumentam o batimento cardíaco e a pressão arterial, proporcionando maior fluxo sanguíneo ao corpo. Até aqui, não há nenhuma novidade científica.

 

O que permanecia obscuro é identificar quais são os neurotransmissores responsáveis pela comunicação entre músculo e cérebro na ativação cardiovascular. A descoberta foi realizada por pesquisadores do Laboratório de Fisiologia Integrativa (NeuroVASQ) da Faculdade de Educação Física (FEF) da Universidade de Brasília. 

 

“Identificamos que os neurotransmissores GABA, através dos receptores GABAa, são os principais responsáveis pela comunicação entre os músculos em contração e cérebro em seres humanos”, conta André Teixeira, cientista do laboratório, sobre as conclusões obtidas em sua pesquisa de doutorado em Educação Física pela UnB. Neurotransmissores são substâncias químicas secretadas por neurônios e que atuam nas sinapses nervosas durante a comunicação entre células. 

 

A tese de doutorado, orientada pelo professor da FEF e coordenador do NeuroVASQ, Lauro Vianna, reúne achados publicados originalmente em dois periódicos internacionais na área de fisiologia do exercício: American Journal of Physiology-Heart and Circulatory Physiology (AJP-Heart) e The Journal of Physiology.

 

Recentemente, a pesquisa também estampou a capa do Exercise and Sport Sciences Reviewso qual veicula somente artigos de revisão provenientes de autores convidados e que já possuem publicações de alto impacto sobre o tema. Esta é a segunda publicação com autoria exclusiva de brasileiros desde a criação do periódico em 1973, segundo os cientistas do NeuroVASQ. 

 

“Estudos demonstraram a atuação dos receptores GABAa em ratos desde 2003, mas em seres humanos havia essa lacuna”, conta Lauro Vianna sobre as pesquisas que lhe despertaram a inquietação científica. O docente propôs a André investigar a questão em seu doutorado. Ao longo do curso, Teixeira e Vianna publicaram artigos com as descobertas parciais, o que rendeu a eles premiações internacionais. 

No experimento 2 o voluntário fez uma preensão manual. Crédito: Reprodução/NeuroVASQ
Eletrodos são conectados a voluntário para medir batimentos e pressão cardíaca durante experimento 2. Imagem: Reprodução/NeuroVASQ

 

ENTENDA  A aceleração do batimento cardíaco e o aumento da pressão arterial são exemplos de respostas cardiovasculares desencadeadas pelo exercício físico. Diversos mecanismos neurais perpassam esse processo. O estudo conduzido no NeuroVASQ  concentrou-se apenas no reflexo pressor do exercício (RPE) – processo gerado em resposta ao estímulo mecânico e ao estímulo metabólico que ocorre durante a contração muscular, sendo um dos principais mediadores das respostas cardiovasculares.  

 

Embora a literatura científica reconheça a importância do RPE, faltava esclarecer quais neurotransmissores possibilitam que musculatura e sistema nervoso central se comuniquem. Para testar se os receptores GABAa são os principais responsáveis no processo, os cientistas conduziram dois experimentos: um focado no componente mecânico e o outro no componente metabólico do RPE.  

 

No primeiro experimento, 28 jovens saudáveis, sendo metade mulher, pedalam uma bicicleta sem carga (exercício voluntário) e depois realizam o mesmo movimento de forma passiva (o participante fica parado e o cientista intervém com uma manopla para movimentar sua perna).  

 

O experimento foi repetido por dois dias: um com ingestão de pílula placebo e outro de pílula medicamentosa – o Diazepam, utilizado no alívio de sintomas de ansiedade e tensão – cuja função é aumentar a atividade dos receptores GABAa. Os participantes não eram informados sobre qual das pílulas estavam ingerindo.  

 

O resultado encontrado é que a frequência cardíaca foi bem maior durante o exercício, tanto no movimento ativo quanto no passivo, após uso do medicamento do que sob efeito da pílula placebo.  

 

No segundo experimento, 17 jovens saudáveis, sendo oito mulheres, realizam o exercício de preensão manual e, em seguida, dois minutos de isquemia pós-exercício. Esta é uma técnica em que um aparelho medidor de pressão é insuflado no braço do indivíduo e, quando a pessoa cessa a atividade voluntária (preensão manual), os subprodutos metabólicos ficam acumulados na região insuflada, possibilitando estudar isoladamente a parte metabólica do RPE 

 

A atividade foi realizada antes e após 60 minutos da ingestão da pílula de Diazepam. Os resultados mostram que a pressão arterial e a atividade nervosa simpática muscular foram bem maiores após uso do medicamento. Vale esclarecer que a atividade simpática é a principal informação que o cérebro manda para coração e vasos sanguíneos para aumentar frequência cardíaca e pressão arterial. 

Batimento cardíaco foi maior após uso de medicação.
Gráfico mostra que batimento cardíaco foi maior com uso de medicação do que com a pílula placebo. Imagem: Reprodução/NeuroVASQ

 

 “O uso do Diazepam deixa os receptores GABAa mais sensíveis. Como os níveis de resposta foram maiores sob efeito da medicação, fica evidenciado que esses receptores fazem parte da comunicação neurocardiovascular”, explica André Teixeira.

 

“O conjunto dos dois estudos demonstra, pela primeira vez em seres humanos, que tanto a parte mecânica quanto a metabólica do reflexo pressor do exercício levam informação ao cérebro por meio dos receptores GABAa”, completa.

  

Segundo o pesquisador, “tanto o movimento ativo quanto o passivo ativam o reflexo pressor do exercício. Mas é no exercício passivo e na isquemia pós-exercício que podemos isolar o mecanoreflexo e o metaboreflexo porque, nessas condições, o cérebro não está enviando sinal para que seja feita a atividade, permanecendo apenas as atividades de resposta ao estímulo dos receptores na região”. 

 

DESDOBRAMENTOS  Os achados da pesquisa abrem um leque de possibilidades para novas investigações. Uma hipótese relevante é descobrir se os receptores GABAa contribuem ou não para respostas alteradas em pacientes com algum acometimento cardiovascular ou neurológico 

 

“Estudamos indivíduos saudáveis, agora vamos entender como isso se dá em indivíduos que têm respostas anormais ao exercício. A pesquisa pode gerar novas linhas de tratamento”, antecipa André Teixeira, que atualmente realiza pós-doutorado na Universidade de Guelph, no Canadá – instituição que desenvolve estudos em parceria com o NeuroVASQ.

André Teixeira e Lauro Vianna seguem com novas pesquisas sobre neurotransmissores gabaérgicos. Imagem: Arquivo pessoal

 

RECONHECIMENTO  A equipe do NeuroVASQ tem recebido importantes premiações pelos estudos protagonizados. Em maio, o docente Lauro Vianna foi agraciado pela Sociedade Americana de Fisiologia com o prêmio Beverly Petterson Bishop. A honraria reconhece pesquisas de excelência em neurociência e neurofisiologia de pesquisadores no primeiro nível de carreira. Vianna é o primeiro cientista fora da América do Norte a receber a premiação. 

 

“Só de ler as cartas de recomendação que outros cientistas fizeram, sinto-me lisonjeado ao ver suas impressões sobre minha produção científica e formação de recursos humanos”, agradece o docente.

 

“A premiação coloca nossa instituição em lugar de destaque na área de neurofisiologia do exercício. Incentiva-nos a buscar protagonismo científico e contribuir para produção de conhecimento de qualidade e disruptivo”, acrescenta. 

 

A premiação contemplou o pesquisador com 20 mil dólares, quantia destinada à pesquisa e a melhorias no laboratório. Parte também foi doada para custeio de despesas da Fundação de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos (Finatec), escolhida para gerenciar a verba.  

 

Em 2018, o docente teve sua trajetória reconhecida ao se tornar o primeiro brasileiro a receber o Prêmio Arthur Guyton de Excelência em Fisiologia Integrativa e Medicina. Doutores formados no NeuroVASQ também receberam premiações internacionais. É o caso de André Teixeira, agraciado pela Sociedade Americana de Fisiologia, em 2018 e 2019, por trabalhos apresentados no Congresso Mundial de Fisiologia (Experimental Biology) 

 

“Dá-nos muito orgulho ver que o laboratório tem contribuído com pesquisas de alto impacto, mesmo estando no Centro-Oeste, onde o financiamento científico ainda é pequeno comparado a outras regiões”, conclui Lauro Vianna. 

 

O professor é bolsista de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). As linhas de pesquisa do NeuroVASQ recebem financiamento da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAP-DF), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do CNPq. O professor André Teixeira realizou o doutorado com bolsa da Capes.  

 

NEUROVASQ  A fisiologia integrativa estuda os mecanismos de funcionamento do corpo humano de modo integrado. É um campo de conhecimento dentro da Fisiologia, disciplina básica da formação em ciências médicas e da saúde.  

 

No NeuroVASQ, os pesquisadores avaliam como diferentes condições físicas e clínicas afetam a habilidade do corpo de responder a algum tipo de estresse, físico ou mental. “Nosso foco não é apenas biologia molecular, mas como os diferentes níveis de organização do ser humano interagem e contribuem para formar um todo coerente”, diferencia o coordenador do laboratório.

 

ATENÇÃO – As informações, as fotos e os textos podem ser usados e reproduzidos, integral ou parcialmente, desde que a fonte seja devidamente citada e que não haja alteração de sentido em seus conteúdos. Crédito para textos: nome do repórter/Secom UnB ou Secom UnB. Crédito para fotos: nome do fotógrafo/Secom UnB.