Antes de ser abolida a escravidão no Brasil, o negro tinha seu espaço bem delimitado. Dentro das fazendas, seu lugar era no campo, trabalhando, ou na senzala. Na casa grande, só entrava para servir aos brancos. Quase 120 anos depois, a segregação que parecia ter ficado no século 19, ainda divide lugares de negros e brancos nas casas, nos bairros e até nas cidades.
A separação é visível, mas, ao mesmo tempo, sutil. Confunde-se com uma divisão socioeconômica da população dentro do espaço urbano. “Por muito tempo, a segregação dentro das cidades foi explicada estritamente por questões de renda e não de cor, origem ou escolaridade. Mas uma coisa não está dissociada da outra. São complementares”, explica o arquiteto e urbanista Marcel Sant’Ana. Em sua dissertação de mestrado A cor do espaço urbano: um estudo de caso sobre a segregação no Distrito Federal, defendida em setembro de 2006, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB), Sant´Ana avaliou a distribuição de negros e brancos no DF.
O pesquisador verificou que, apesar da situação de equilíbrio entre as raças na composição dos dois milhões de habitantes – 49,15% de população branca e 49,57% de pardos e pretos –, a divisão deles nas cidades do Distrito Federal é bem mais discrepante. “Os negros são maioria nas áreas mais afastadas do centro, de pouca infraestrutura e com os piores indicadores de desempenho socioeconômico, como renda e escolaridade”, detalha Sant´Ana.
A partir de dados do Censo 2000 e da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílio (PDAD) 2004 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o urbanista elaborou dois mapas que demonstram a segregação racial (veja mapas). Dentre as 27 regiões administrativas (RAs), Brazlândia e Recanto das Emas foram as duas que apresentaram uma maior porcentagem de população negra – 63,3% e 63,2%, respectivamente – entre seus moradores.
O pesquisador ressalta, no entanto, que esse tipo de avaliação oculta algumas subdivisões importantes, como no caso da Estrutural e Itapoã, os dois principais espaços de concentração não-branca. “Os novos assentamentos formados na proximidade de RAs já estabelecidas, acabam por distorcer a caracterização por cor e outros indicadores da região como um todo”, revela. Junto ao Guará, a Estrutural aparece com 56,3% de pessoas que se declaram negros. Quando a vila é analisada separadamente, o número sobe para 65,3%.
BRANCOS – O oposto acontece nos lugares mais abastados do Distrito Federal. Os Lagos Sul e Norte apresentam 84,3% e 76,4%, respectivamente, de população branca. “Esse número pode ser ainda maior, porque os dados do Censo e do PDAD consideram os trabalhadores domésticos residentes no trabalho como parte da população da região, dando a falsa impressão de maior permeabilidade. Contando somente os moradores desses bairros, a porcentagem de brancos seria bem maior”, avalia o pesquisador.
Nestas duas regiões administrativas, os indicadores de renda per capita, infraestrutura e escolaridade são os mais altos. No Lago Sul, por exemplo, um pai de família ganha, (em média) mais de R$ 11 mil por mês (o equivalente a 43 salários mínimos). No mesmo período de tempo, um morador de Itapoã tem que sobreviver com apenas R$ 403,00 (pouco mais de um salário mínimo).
Marcel também avaliou a região de origem dos moradores das cidades do DF. Os chefes de família nordestinos são maioria em Itapoã, na Estrutural e no Varjão. No Plano Piloto, nos Lagos Sul e Norte e no Sudoeste, a predominância é de pessoas que vieram do Sudeste. “É como se a pessoa negra, pobre e nordestina tivesse um lugar específico para morar e um espaço que não pode ocupar”, sugere.
PLANEJADA – O pesquisador sustenta que Brasília não apresenta uma dinâmica diferente de outras cidades do país quando se trata de segregação racial: o centro é ocupado por uma população branca de classe média alta, enquanto as áreas mais afastadas abrigam os pretos e pardos. Mas o fato de ser uma cidade planejada, denuncia uma distribuição precoce dos espaços entre as raças. “Desde sua concepção, Brasília já tinha uma nítida separação entre os espaços destinados aos brancos, representantes do alto e médio escalão da burocracia estatal, e os espaços destinados à população negra, representantes da classe baixa, construtora da capital”, detalha.
Depois de 46 anos, os territórios continuam fortemente segregados do ponto de vista racial. “As antigas satélites que abrigaram os candangos continuam a abrigar seus descendentes e outros trabalhadores de classe baixa que vieram depois para Brasília”, pontua.
Para o pesquisador, a segregação racial determina elevados custos sociais. É como um ciclo: negros e pobres habitam lugares distantes e com baixa infraestrutura. Suas condições de moradia acarretam mais problemas socioeconômicos e mais separação. “Habitar esses locais com precário sistema de saneamento torna a população alvo de maior incidência de doenças e de internações. Além disso, o estigma de morar em um lugar distante e violento, aumenta ainda mais a segregação”, explica.
O DF EM CORES
Maioria de brancos
1. Lago Sul – 84,3%
2. Lago Norte – 76,4%
3. Brasília – 76,6%
4. Cruzeiro (e Sudoeste) – 69,2%
5. Park Way – 62,4%
6. Guará – 59,3%
7. Taguatinga – 53,8%
8. Candangolândia – 52%
Maioria de negros
1. Estrutural – 65,3%
2. Brazlândia – 63,3%
3. Recanto das Emas – 63,2%
4. Santa Maria – 61,57%
5. Paranoá – 60,4%
6. Planaltina (e Itapoã) – 60,3%
7. Samambaia – 58,1%
8. Gama – 57,3%
9. Ceilândia – 56,6%
10. Riacho Fundo – 55,6%
11. São Sebastião – 55,5%
12. Sobradinho – 51,45%