Um estudo publicado em maio no periódico Pharmaceuticals, realizado por pesquisadores do Hospital Universitário de Brasília (HUB/UnB) e do Instituto de Ciências Biológicas (IB) da UnB, revelou que o uso de óleo de cannabis de amplo espectro pode aliviar os sintomas do Transtorno do Espectro Autista (TEA).
Ao todo, foram recrutados 30 voluntários diagnosticados com autismo nível 2 ou 3 de suporte, com idades de 5 a 18 anos, pacientes do HUB. A pesquisa apontou melhorias significativas nas habilidades de comunicação, atenção, aprendizado e na qualidade de vida dos participantes. Os níveis de suporte do TEA correspondem a maior ou menor necessidade de apoio para a realização de atividades em vários campos da vida. Tem-se que o nível 3 corresponde àquele que demanda maior apoio.
Conduzido pela neurologista infantil Jeanne Mazza, com participação dos professores Fábio Caixeta, Renato Malcher e Lisiane Seguti, o estudo investigou os benefícios do extrato de cannabis medicinal na melhora da qualidade de vida dos voluntários. Para isso, a equipe selecionou pacientes não sindrômicos, excluindo, por exemplo, aqueles diagnosticados com outras comorbidades, como a epilepsia.
"Foi feita uma seleção criteriosa dos pacientes, com vários critérios de exclusão para que os efeitos do tratamento pudessem ser mais claramente observados", afirma Fábio Caixeta.
Todos os pacientes foram submetidos a avaliação neuropsicológica e a questionários funcionais adaptativos, antes e após o tratamento, aplicados pela neuropsicóloga Doris Beserra, para melhor caracterização clínica inicial, bem como avaliação da resposta terapêutica.
“Isso foi feito para atestar que os benefícios observados nessa área não fossem apenas pela melhoria no sono, já que é algo que os extratos de cannabis também podem produzir”, explica o professor do Departamento de Ciências Fisiológicas (CFS/IB) Renato Malcher.
Segundo os pesquisadores, os resultados apontam que o tratamento pode ser uma boa opção. “Eles têm menos efeitos colaterais do que as medicações atualmente utilizadas no manejo do TEA, como os fármacos anticonvulsivantes, antipsicóticos, psicoestimulantes e ansiolíticos”, esclarece Fábio.
ESTUDO – No artigo, intitulado Implicações clínicas e familiares do extrato fitocanabinoide de espectro total dominante de canabidiol (CBD) em crianças e adolescentes com transtorno do espectro autista não sindrômico (TEA) moderado a grave: um estudo observacional sobre o manejo neurocomportamental, são apresentados resultados do estudo de corte retrospectivo, observacional e transversal que avaliou os efeitos do extrato de cannabis de espectro completo.
O extrato, como o utilizado, é um produto derivado da planta de cannabis, que contém ampla gama de canabinoides, terpenos e outros compostos naturais. Ao contrário dos óleos isolados, que possuem apenas um, esse pode incluir diferentes canabinoides, como THC (tetrahidrocanabinol), CBD (canabidiol), CBG (cannabigerol), CBN (cannabinol).
Para este estudo, os voluntários receberam, durante seis meses, doses diárias de extrato de cannabis composto por canabidiol (CBD) e tetrahidrocanabinol (THC) em uma proporção de 33:1, ou seja, 33 partes de CDB para cada dose de THC.
Além das avaliações clínicas, os pais ou cuidadores foram entrevistados de forma independente pela estudante Alice Martins-Vieira, graduanda em Ciências Biológicas, para avaliar os efeitos percebidos no tratamento. "Foi possível confirmar os resultados através de dois métodos diferentes. Isso garantiu uma análise abrangente dos benefícios observados”, expôs Renato.
O docente relata que “foram observados melhoras em vários domínios da saúde, incluindo na interação pessoal, comunicação, estado de humor, aspectos cognitivos, motricidade, sono, contato visual e qualidade de vida, tanto para o paciente quanto para a família”.
“Houve casos em que as crianças estavam com sintomas de sedação, letargia ou eram crianças não verbais, e os pais relataram que tudo melhorou”, diz Fábio. “Tenho filhos na mesma faixa etária dos pacientes e poder ver o progresso deles é emocionante", descreve.
Ela relata que muitos dos pais falam de uma maneira otimista sobre a possibilidade de ter esse tratamento de forma contínua. Além disso, pontua que "embora alguns pacientes tenham reportado efeitos colaterais leves, como irritabilidade e problemas digestivos, eles foram resolvidos principalmente com a redução da dose".
DESAFIO – Apesar dos resultados promissores do estudo – também assinado pelo pesquisador Victor Rodrigues, que desempenhou papel importante na fase inicial do projeto e no desenho da pesquisa –, ainda há limitações, como a ausência de grupo de controle e o pequeno número de participantes.
Os autores concluem que o óleo com 33:1 CBD:THC pode ser uma opção segura e eficaz para tratar os sintomas do autismo, mas enfatizam a necessidade de mais pesquisas para confirmar esses benefícios em uma população mais ampla.
Eles apontam que "a ideia original era realizar um estudo duplo-cego", o que não foi possível devido a entraves burocráticos, já que o Ministério da Saúde regulamentou o uso em crianças somente para determinados casos de epilepsia.
Fábio Caixeta salienta que "ainda há uma expectativa sobre as novas regulamentações nacionais sobre pesquisas com humanos, o que podem facilitar a realização de estudos duplo-cegos no futuro”.
Outro ponto destacado é que os fitocanabinoides mesmo sendo moléculas naturais do reino vegetal, utilizadas há milênios como fármaco e para artesanato, como é o caso do cânhamo, ainda enfrentam embargos e preconceitos.
“Eles foram fortemente associados a populações marginalizadas no século passado, e esse pensamento reforçado pelas políticas dos Estados Unidos é difundido globalmente”, comentou Caixeta. Por isso, a pesquisa com canabinoides é complexa devido ao tabu e à falta de dados de longo prazo sobre seus efeitos.
FUTURO – Os pesquisadores esperam que as novas descobertas possam abrir caminho para criação de diretrizes e regulamentações que facilitem o uso terapêutico de extratos de cannabis no país. E que, com mais estudos e apoio institucional, a medicina canabinoide torne-se uma alternativa viável e segura em diversas condições.
Eles salientam que o artigo publicado dá continuidade aos estudos anteriores e que é uma base para pesquisas vindouras. “Vamos continuar testando novas variações de extrato de cannabis, trabalhar com um número maior de pacientes e com o uso de placebo", comenta Renato.
O professor aponta que estudos exploratórios como o descrito fazem parte do caminho científico de agora em diante e que é crucial a continuidade de testes para alcançar as melhores composições e concentrações, a fim de identificar o padrão de dose a ser utilizado.
ENTENDA – O TEA é um transtorno do neurodesenvolvimento humano marcado por prejuízos na comunicação, no comportamento e na interação social.