A longa espera por um atendimento nos centros de saúde públicos fez das farmácias destino preferencial para muito brasileiros em busca de ajuda. No entanto, quando o problema está relacionado a Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs), está provado que esse não é o melhor caminho a seguir.
Tese de doutorado defendida em janeiro de 2006 na Universidade de Brasília (UnB) mostra que os atendentes das farmácias indicam tratamentos incorretos e raramente aconselham o cliente a procurar ajuda médica. Além disso, eles dificilmente recomendam o tratamento de parceiros sexuais e a utilização de preservativos, o que permite a retransmissão de doenças como HPV, sífilis, hepatite B, gonorréia e até mesmo Aids.
Para chegar a essas conclusões, a farmacêutica e autora da pesquisa, Janeth de Oliveira Silva Naves, investigou 70 das 283 drogarias localizadas em Brasília e na região administrativa de Taguatinga, dois locais populosos do Distrito Federal. A escolha das farmácias se deu por meio de sorteio. Cada uma delas foi visitada por três alunos – os “clientes simulados”. Ao todo, participaram como voluntários do teste 20 alunos da UnB e da Universidade Católica de Brasília (UCB), todos do sexo masculino.
Eles chegavam ao local relatando ao atendente uma secreção uretral e ardência ao urinar – típico sintoma de doença sexualmente transmissível. Cerca de 70% dos atendimentos resultaram em apenas indicação de medicamentos, sem recomendação de tratamento para os parceiros ou uso de preservativo em novas relações sexuais.
“Todos os tratamentos recomendados foram incorretos. Principalmente com relação à dose e duração do tratamento com antibióticos. Em alguns casos, até mesmo os medicamentos recomendados estavam incorretos”, lamenta Janeth, para quem o mau atendimento nas farmácias deve ser considerado um problema de saúde pública.
“As conseqüências dos tratamentos inadequados são diversas, de aumento da resistência bacteriana a antibióticos, abortos, infertilidade e manutenção da cadeia de transmissão. A doença tanto pode não melhorar, como ainda se complicar e, nos casos de mulheres grávidas, comprometer a saúde do bebê.”
ATIVIDADES EDUCATIVAS - Na tentativa de melhorar o atendimento nas farmácias, a pesquisadora da UnB desenvolveu atividades educativas nas drogarias pesquisadas, voltadas para atendentes e farmacêuticos. O trabalho foi realizado em parceria com a Gerência de DST/AIDS da Secretaria de Estado da Saúde do DF.
O treinamento durou três dias e envolveu aulas sobre aconselhamento, medidas preventivas, terapia com antibióticos, resistência bacteriana, legislação vigente e ética. As orientações estavam registradas em duas cartilhas. Uma delas, voltada para o proprietário e para os balconista da farmácia. A outra, para os farmacêuticos.
As mesmas farmácias foram visitadas por entrevistadores para investigação das características demográficas dos trabalhadores, forma de remuneração, cursos mais freqüentes que participam e avaliação do grau de conhecimento sobre as DSTs. De acordo com a pesquisadora, das farmácias visitadas pelos clientes simulados, apenas 44,7% contavam com a presença do farmacêutico no momento da entrevista, descumprindo o que determina a legislação.
Após o curso, os “clientes simulados” voltaram a entrar em ação e o atendimento para DSTs continuou insatisfatório nas drograrias. Foi identificada dificuldade de aprendizagem entre os balconistas. Muitos deles têm apenas primeiro grau incompleto. A diferença de formação entre farmacêuticos (com curso superior) e balconistas também se refletia no salário. Em vez de salário fixo, os balconistas recebem por comissões proporcionais às vendas.
“Com isso, na pesquisa, verificamos que os balconistas indicam quatro vezes mais medicamentos que os farmacêuticos. Os farmacêuticos, por sua vez, encaminham cinco vezes mais clientes para o posto de saúde”, conta a pesquisadora. Dos profissionais que se apresentaram para o atendimento aos clientes simulados, 53,8% eram balconistas, 18% eram farmacêuticos e 28,5% trabalhadores não identificados.
RECOMENDAÇÕES – Para realizar o levantamento nas farmácias privadas, entre 2004 e 2005, a doutoranda da UnB contou com o apoio dos Conselhos Regional e Federal de Farmácia, da Gerência de DST/Aids da Secretaria de Saúde do Distrito Federal e do Programa Nacional de DST/Aids. O governo federal chegou a repassar um financiamento de R$ 18 mil fornecido pela Organizações das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) para continuidade dos estudos.
No entanto, é exatamente para os órgãos públicos que vão as principais recomendações da farmacêutica. Janeth defende que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) modifique o status das farmácias de estabelecimentos meramente comerciais, atribuindo a ela responsabilidades na promoção da saúde e prevenção de doenças, conforme recomenda a Organização Mundial da Saúde (OMS) e está previsto na legislação.
Ainda no que diz respeito às recomendações, a pesquisadora sugere que o Conselho Federal de Farmácia exija maior qualificação dos atendentes contratados pelas drogarias e conscientize os proprietários sobre a forma inadequada de remuneração desses trabalhadores por comissões. Esse formato em vigor estimula a venda indiscriminada de medicamentos.
“Verificamos que os laboratórios farmacêuticos qualificam trabalhadores das farmácias, ministrando cursos sobre vendas e sobre temas específicos, como as DSTs”, conta Janeth. “Nessas aulas a instrução oferecida é direcionada para as estratégias de indicação de seus produtos aos consumidores pelas balconistas, inclusive daqueles cuja venda exige receita médica como os antibióticos.”
Rede pública
Em estudo anterior de mestrado, também desenvolvido na UnB, Janeth verificou falhas na assistência farmacêutica pública. Dos 67 postos e centros de saúde do Distrito Federal existentes em 2002, ela visitou 15. Apenas dois deles tinham farmacêutico. Nos estoques, faltavam medicamentos essenciais. Os pacientes que freqüentavam os postos, por sua vez, demonstravam pouco entendimento sobre as receitas e os medicamentos utilizados.