De origem humilde, fala suave e gestos gentis, Jean Michel Rodrigues Barros é um garoto que guarda um distintivo especial em relação a seus pares e colegas: é superdotado. Com apenas 11 anos, o aluno da rede pública da Ceilândia, que saltou duas séries e hoje cursa o oitavo ano do Ensino Fundamental, tem em seu curto percurso escolar uma medalha de bronze conquistada na Olimpíada Nacional de Astronomia, em 2010. Jean configura um exemplo de como a aceleração de ensino é uma estratégia bem-sucedida para acolher crianças, ainda na educação infantil, com essas características. A afirmação é da pesquisadora Renata Rodrigues Maia-Pinto, que trabalhou, em sua tese de doutorado no Instituto de Psicologia da UnB, com 12 estudantes superdotados de escolas públicas do DF, confirmando que essa prática, além de recomendável, não implica perdas acadêmicas ou dificuldades socioemocionais às crianças.
Segundo Renata, a legislação educacional brasileira precisa ser aperfeiçoada para melhor acolher crianças com altas habilidades. Renata critica, por exemplo, a proibição de se ingressar no ensino fundamental antes dos seis anos de idade, referindo-se ao impedimento trazido pela Lei de Diretrizes Básicas da Educação. Tal restrição, segundo ela, pode repercutir em toda formação escolar e juvenil, “pois quando mais cedo houver esse encaminhamento maior será o aproveitamento educacional e melhor a interação com outras crianças”.
Como outros pontos fracos da LDB, apontou tanto a falta de regulamentação específica sobre como incorporar a prática de aceleração de ensino, deixando a escola vulnerável em relação a que procedimentos implantar, quanto a não previsão de outras modalidades de progressão no ensino.
Alguns atributos importantes para caracterizar superdotados são: rapidez e facilidade para aprender, abstrair ou fazer associações, criatividade, capacidade para analisar e resolver problemas, independência de pensamento, habilidade excepcional para talentos variados, como música, artes, dança, informática, bom relacionamento social e liderança, senso crítico acentuado, sensibilidade social demasiada, entre outros.
A pedagoga reconhece, porém, que nem só de glórias e trunfos vivem as crianças prodígio: “equilibrar altas habilidades e talentos extraordinários com uma infância proveitosa e feliz é o maior desafio dos gestores de ensino e dos pais de meninos e meninas superdotados”, acredita. “O Estado, os pais e a escola devem identificar e reconhecer esses alunos com características especiais. Caso contrário, há o risco de essas crianças se mostrarem desinteressadas, desmotivadas, podendo até mesmo apresentar comportamentos que se confundem com hiperatividade, ou seja, um desastre anunciado não só para o rendimento escolar como para a vida pessoal desses jovens”, avalia.
“Podemos citar o caso do Steve Jobs, inventor da Apple, que, em sua biografia, criticou abertamente seus professores por não terem acreditado nele, além do Ricardo Semler, outro empresário bem-sucedido que não foi devidamente estimulado em sua vida escolar”, complementa.
PRECONCEITOS - Um dos propósitos de seu estudo foi desmistificar o preconceito associado ao avanço de série como algo negativo, como desajuste socioemocional ou dificuldade de aprendizagem. Participaram do seu universo de investigação, 12 crianças superdotadas de escolas públicas. Para comprovar sua hipótese de que a aceleração é uma intervenção bem-sucedida, Renata trabalhou na caracterização de alunos submetidos a procedimentos de aceleração de ensino quando freqüentavam a educação infantil, do ponto de vista acadêmico, cognitivo e socioemocional, bem como na percepção dos próprios estudantes, seus pais e professores no processo.
“As crianças superdotadas procuram pares com quem possam compartilhar interesses, visão de mundo”, atesta a pesquisadora ao defender que esse tipo de convivência e afinidade é necessário para “uma convivência social mais fácil, pois, caso contrário, a tendência é destoar daqueles que estão em sua faixa etária”, complementa.
Segundo Renata, “antigamente havia o estereótipo do nerd, hoje a realidade é outra. Essas crianças gostam de brincar, mas também de brincar de estudar”, conta. A partir de sua observação, notou que esses meninos e meninas brincam de ler e também de inventar jogos. “Para eles, essa busca pelo conhecimento, por meio de jogos e outras formas de apreensão criativa, são pura diversão”.
SENSIBILIDADE SOCIAL - Em casa, não dispõe de computador tampouco nunca foi a um cinema. Os livros também são poucos. Os pais de Jean Michel Rodrigues Barros – ele, cobrador de ônibus; ela, dona de casa – desconfiaram de sua superdotação quando o viram lendo sozinho aos três anos de idade. “Não, não ensinamos a ele”, conta Sandra Rodrigues, mãe de Jean. Orgulhosa, refere-se ao filho como “computador de dois pés”: “ele sabe tudo. Sempre falo que vou deixar para fazer minhas compras à tarde porque aí levo meu computador de dois pés para calcular tudo”.
Aluno já reconhecido por sua perspicácia e criatividade, Jean se destacou também na Xlll Olimpíada Brasileira de Astronomia e Astronáutica, em 2010, campeonato que reuniu quase 800 mil estudantes em todo país, onde foi contemplado com medalha de bronze.
Com traço maduro e texto impecável, Jean mostra a revista em quadrinhos que está produzindo. O gibi é intitulado “anti-bullying”, uma tentativa sua de denunciar uma prática que considera “covarde, algo que ninguém escapa”, aproveitando para contar que sofreu bullying pelo fato de ser menor e mais novo que a turma. “Eu desenho desde sempre. Também aprendi sozinho”, diz, apontando outra revistinha sua sobre prevenção de acidentes.
Micau Vieira Santos, professora responsável pela sala de recursos de altas habilidades, da Escola Classe 64, da Ceilândia, conta que Jean é um garoto de grande potencial: “criativo, produtivo, com uma sensibilidade social impressionante. Seu pensamento é muito avançado em relação à sua idade. Acelerá-lo no ensino foi a melhor alternativa”, avalia. “O superdotado, em geral, quando acolhido e estimulado, apresenta maturidade emocional e não apenas cognitiva”, atesta a pedagoga que desde 2003 trabalha com crianças e jovens com essas características. Jean está sob sua coordenação desde 2008.
De modo tímido e voz suave, Jean Michel fala de seus jogos e personagens preferidos – Banco Imobiliário e o Franjinha, do Mauricio de Souza – e também do seu fascínio pelas estrelas: “o tamanho do universo me assusta e me encanta”. Seus sonhos? “Conhecer Paris e me formar arquiteto”. “Sim, eu gosto de ser e me saber superdotado. Tenho mais responsabilidade com o mundo, sei disso, mas fico feliz de poder, no futuro, ajudar não só o meu pai e a minha mãe, mas também as pessoas, em geral”, declarou.
Para a autora da pesquisa, declarações como essa “mostram que se o superdotado não for bem acolhido a tendência é que incorra em desânimo, desinteresse e até evasão escolar”. Segundo ela, a partir do que levantou em seu estudo, “as crianças, quando apoiadas, desenvolvem um autoconceito extremamente positivo”, o que significa que não apenas se aceitam bem quanto se orgulham de suas particularidades.
Somente no Distrito Federal são 43 salas de recursos de altas habilidades, distribuídas em nove cidades, atendendo a 1800 alunos superdotados. Segundo Renata Maia, o DF é pioneiro nesse tipo de atendimento: “são mais de 30 anos em um programa que tem acúmulo e credibilidade”.
RECOMENDAÇÕES – O resultado de seu estudo sugere que as informações que professores dispõem sobre o fenômeno da superdotação e práticas educacionais direcionadas ao aluno com alto potencial ainda são limitadas e, muitas vezes, baseadas em ideias estereotipadas e de senso comum. Ainda se faz necessário, segundo a pesquisadora, um melhor planejamento de estratégias e atividades, a serem desenvolvidas no contexto escolar, considerando-se suas características, interesses, ritmo de aprendizagem e necessidades acadêmicas.
Nesse sentido, em relação ao trabalho educacional com o aluno superdotado e à adoção da aceleração de ensino, Renata recomenda tanto que disciplinas sobre superdotação sejam incluídas em cursos de formação de professores quanto esse conteúdo seja previsto em programas de educação especial. Também sugere que o currículo escolar seja flexível, de modo que o professor ofereça atividades diversificadas para diferentes grupos de alunos, considerando ritmos de aprendizagem, interesses e habilidades distintos.
Quanto à legislação educacional, reitera que seja retirada da Lei de Diretrizes Básicas da Educação a expressão “exceto no primeiro ano de ensino fundamental”, assegurando, assim, o ingresso da criança nesse nível antes de completar seis anos, caso se comprove a superdotação. Propõe ainda que a lei inclua outras modalidades de aceleração de ensino, “para que sejam cumpridos os direitos constitucionais do aluno de prosseguir nos estudos”.
Atualmente Renata Maia-Pinto está engajada no Conselho Brasileiro para Superdotação. Sua pesquisa será apresentada, no final de julho, em congresso promovido pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).