Pesquisa da professora Gabriela Tenório, questionando desenho urbanístico de Brasília e propondo revalorização dos espaços públicos, obtém distinção em encontro de arquitetura e urbanismo.

O desenho urbanístico da capital federal contribui, desde a sua inauguração, para acentuar características que a prejudicam. A afirmação é da professora de Arquitetura da UnB Gabriela Tenório, em tese de Doutorado recentemente defendida. A motivação de sua pesquisa decorreu de um incômodo pessoal com os espaços públicos ociosos ou inadequados a uma convivência harmoniosa e funcional de sua cidade natal. Em um amplo estudo sobre Brasília, arquitetura e vida pública, a professora mostrou como os trajetos longos e desconfortáveis enfrentados por pedestres, as áreas livres desperdiçadas e os espaços públicos deteriorados reduzem a qualidade de vida dos cidadãos.


Para estabelecer a relação entre arquitetura e vida pública, Gabriela, professora da UnB desde 1996, recorreu ao enfoque sociológico da Teoria da Sintaxe Espacial, dos ingleses Bill Hillier e Julienne Hanson, o qual compreende a organização espacial como forma de solidariedade social. E foi partindo da premissa que a configuração urbana assume implicações no funcionamento das sociedades que escolheu Brasília como objeto de estudo e expôs como o Distrito Federal não vem trabalhando plenamente para favorecer sua vida pública, embora “possa ser uma cidade que valorize seus habitantes oferecendo-lhes espaços públicos de qualidade sem perder de vista as imposições que tem por ser patrimônio cultural da humanidade”, reconhece.


URBANIDADE –
 Em sua tese intitulada “Ao desocupado em cima da ponte. Brasília, arquitetura e vida pública”, a professora confere relevo ao conceito de “urbanidade” em sua dimensão de “cortesia, civilidade, afabilidade, um dos valores mais caros à sociedade democrática”. Como fonte de estudos e inspiração, a pesquisadora esteve na Dinamarca e nos Estados Unidos para confirmar como três exemplos de urbanidade – Copenhague, Melbourne e Nova York – valorizam a dimensão humana nos espaços públicos. “Pude atestar in loco de como gestores compreendem que lugares vazios subutilizados são sinônimos de desperdício social, cultural, financeiro, ambiental”. Nessas cidades, segundo ela, valoriza-se também o pedestre, “já que o automóvel particular assume menor importância na hierarquia da mobilidade urbana”.


OBJETO DE ESTUDO –
 A Plataforma Rodoviária e o Eixo Monumental Leste – trecho que compreende a Esplanada dos Ministérios, a Praça dos Três Poderes e os Setores Culturais Sul e Norte – foram seus focos sistemáticos de observação. A partir de método de contagem aprendido com o urbanista dinamarquês Jan Gehl, Gabriela procedeu ao levantamento do tráfego de pedestres em pontos estratégicos do Eixo e da Esplanada, mapeando ainda os ambulantes que atuam na área.

Seu propósito foi apontar problemas cruciais à boa dinâmica da vida pública, como “espaços inóspitos, nada convidativos” e áreas impróprias ao conforto, segurança e circulação de quem anda a pé ou simplesmente poderia dispor desses locais como destino de prazer e fruição. Segundo levantou, cerca de 60 mil pessoas transitam nessas localidades.


Para a professora, “espaços públicos vazios ou pouco utilizados não chamam a atenção das pessoas, não são percebidos como um sintoma de que é preciso fazer algo por eles. Infelizmente, se esse esvaziamento não é notado, não é de se admirar que não se faça nada mais por esses espaços”, lamenta, referindo-se, por exemplo, ao abandono verificado nas praças contíguas ao Conjunto Nacional de Brasília e ao Edifício Conic, nos setores de Diversão Norte e Sul, respectivamente.


PEDESTRES E TRANSPORTE PÚBLICO –
 Para ilustrar como as políticas públicas não favorecem o pedestre brasiliense, a pesquisadora acompanhou as rotinas dos camelôs tanto na plataforma rodoviária e Esplanada - na Praça dos Três Poderes e Catedral -, como em outras feiras tradicionais no DF. Ao atestar a dificuldade de acesso das pessoas a essas localidades, concluiu que a estrutura da cidade favorece o transporte individual em detrimento dos demais meios de mobilidade. Exemplos disso são o superdimensionamento do sistema viário, que atrofia soluções para o tráfego e travessia de pedestres, e a inexistência de redes de passeios públicos e ciclovias, além de estruturas sabidamente precárias de transporte público e coletivo. “É uma cidade mais preocupada com o conforto do automóvel, pouco acostumada a olhar para o pedestre e suas necessidades. Reverter essa lógica requer também uma mudança de cultura”, diz.


A pesquisadora elenca como soluções para estimular o transporte público e a circulação de pedestres a não construção de vias marginais de carros e de novas vagas de estacionamento no centro, a redução do espaço de circulação do transporte privado, a cobrança de estacionamento em local público, a criação de uma rede cicloviária e de calçadas em toda a cidade, a adequação das baias de ônibus para favorecer a fluidez do trânsito, além de um plano simplificado da geometria viária que desestimule o tráfego em alta velocidade. “Brasília só vai começar a se transformar seu padrão de mobilidade quando o transporte público e o não motorizado triunfarem, sendo uma opção atraente e eficiente”, defende.


PLATAFORMA DA RODOVIÁRIA –
 Ao analisar situações da vida pública brasiliense, a pesquisadora chegou às seguintes conclusões: a plataforma rodoviária não é um destino, mas uma extensa e mal estruturada área de passagem. “Ela não favorece a vida pública nem em seus locais de passagem tampouco em suas áreas de permanência”. Pela sua avaliação, os calçadões leste e oeste são mal dimensionados e não oferecerem apoio adequado ao público. Complementa ainda que as duas praças ali existentes não promovem a fixação de pessoas. A partir da visão de Lúcio Costa para a plataforma e suas praças – “o papel de um centro urbano e de uma cidade viva” –, Tenório reafirma a necessidade de que esta cumpra o papel de ser o ponto mais privilegiado da cidade, “um lugar acessível, diverso, confortável, interessante, onde o pedestre tenha preferência absoluta”.


Recomenda, assim, adequar o local aos pedestres, garantindo continuidade e segurança em seus trajetos; destinar uma das faixas de rolamento das pistas de carros para a ampliação das calçadas em 3,5m; paradas de ônibus iluminadas e redimensionadas segundo o real número de usuários; sinalização para ciclistas e tempos de semáforos ampliados para pedestres; ambulantes cadastrados em locais que não tumultuem a circulação das pessoas; praças reorganizadas para comportar fluxo de passagem em seu interior, tornando-se, desse modo, espaços de permanência; reativação das fontes e colocação de bancos e estruturas de sombreamento. A professora sugere ainda um concurso público de projetos de arquitetura para as praças, a serem dotadas de água, vegetação, arte, mobiliários, banheiros públicos, quiosques, além de espaços para eventos temporários.


PRAÇA DOS TRÊS PODERES –
 A partir de sua verificação nos principais pontos de circulação da Esplanada dos Ministérios, Gabriela constatou que “é pobre a vida pública cotidiana no local mais bonito, emblemático e significativo da cidade, justamente um dos espaços que fez Brasília merecer o título de Patrimônio Cultural da Humanidade”. Segundo suas observações, a proximidade com os espaços simbólicos de poder conferem às pessoas uma sensação de importância ao se perceberem valorizados como cidadãos, desenvolvendo, assim, uma relação de pertencimento e comprometimento.


A professora defende, em sua tese, que o Conjunto Cultural da República, a Esplanada e a Praça dos Três Poderes existem também para “serem vivenciados, e não apenas contemplados”.  Propõe, em seu estudo, que além de adequar toda a área para os pedestres é preciso desestimular o transporte particular, com paradas de ônibus iluminadas e adequadas ao contingente de pessoas e estacionamentos pagos. O sistema viário entre o Touring e o Museu da República deve ser redesenhado e os calçamentos ampliados, com no mínimo 5m de largura. Recomenda ainda mais uma ampla arborização a emoldurar o gramado central. Sob essas árvores, propõe que os passeios públicos ali existentes sejam alargados, recebendo bancos e bebedouros. Em relação aos setores culturais sul e norte, as áreas que circundam, respectivamente, a Catedral e Museu da República e o Teatro Nacional, sugere que essas áreas sejam tratadas “à maneira de parque”, conforme pensou Lúcio Costa, o que suscitaria mais presença cultural e artística.


Por fim, Gabriela Tenório conclui que o encontro das diversidades na cidade é fundamental para o desenvolvimento urbano, “como já observava Engels no século 19, ao analisar a situação da situação da classe trabalhadora na Inglaterra”. Para ela, “esse encontro de semelhanças e diferenças no espaço público nos permite uma validação de nossa própria essência e uma efetiva possibilidade de crescimento”, defendendo que “compartilhar o mesmo espaço com outras pessoas favorece a aprendizagem social”. Ao final de seu estudo, a professora se confessa otimista: “acredito que os espaços públicos, desta e de todas as cidades, possam ser concebidos para nossos bem amados”.