Dissertação de mestrado identifica nas canções do compositor e escritor as transformações pelas quais o romantismo passou na pós-modernidade.

O que aconteceu com o amor nos últimos 40 anos? É possível encontrar respostas ouvindo Chico Buarque. A pesquisadora Brunna de Lima, do Programa de Pós-Graduação em Literatura da UnB, estudou como o amor é expresso nas letras do escritor e compositor. A partir da análise de dez canções compostas entre 1971 e 2006, Brunna conseguiu identificar nas músicas de Chico Buarque as transformações pelas quais o sentimento romântico passou e passa na pós-modernidade.


A distância entre o romantismo desbragado de Pedaço de mim (1977-78) - “Oh, pedaço de mim, Oh, metade amputada de mim, Leva o que há de ti que a saudade dói latejada” – e a glorificação do desejo de Cambaio (2001) - “Eu quero moça que me deixe perdido, Procuro moça que me deixe pasmado, Essa moça zoando na minha idéia, Eu quero moça que me deixe zarolho” - confirmam as mudanças de comportamento apontadas por teóricos da pós-modernidade. “Passamos do romantismo extremo, do sentimento idealizado, para o amor fast-food, dos relacionamentos descartáveis”, resume Brunna de Lima, que foi orientada pela professora Sylvia Cyntrão.


AMOR NA TEORIA – Antes de analisar as canções, a pesquisadora se debruçou sobre os livros de Anthony Giddens, Zygmunt Bauman e André Lázaro. No primeiro, ela encontrou descrições sobre as transformações sofridas pelo sujeito pós-moderno nos campos da sexualidade, intimidade e identidade.


Segundo Giddens, hoje as pessoas vivem ‘relacionamentos puros’, nos quais têm suas próprias perspectivas e objetivos. Quando a combinação não dá certo, o casal se separa sem dificuldades e cada um parte em busca de um novo parceiro. “Queremos relacionamentos que já venham com certificado de troca garantida”, brinca Brunna de Lima.


Autor de Amor Líquido, o sociólogo Zygmunt Bauman sustenta que o amor contemporâneo se converteu em um bem de consumo, no qual a facilidade e a novidade são os valores máximos. Neste contexto, o compromisso irrestrito é encarado como uma armadilha.


De André Lázaro, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Brunna de Lima aproveitou as reflexões sobre como o tema amor é representado pela indústria cultural. “Com o advento da modernidade e o aumento do poder de consumo, o amor deixou de ser um tema restrito às quatro paredes do casal para se tornar um apelo recorrente no mercado em canções, filmes, livros e até perfumes”, explica a pesquisadora.


AMOR NA MÚSICA –
 As letras de Chico Buarque dos anos 70 revelam o medo da separação e do rompimento, correspondem a uma interpretação do amor bastante distinta dos conceitos pós-modernos. “O sujeito colocava parte da sua própria identidade no par amoroso, e se por acaso esse par amoroso partisse, a sensação era que parte da identidade dele tinha ido embora”. Como exemplo desta representação, Brunna cita as letras de Pedaço de mim e Eu te amo (1980).


Em Samba do grande amor , de 1983, o tema da separação já aparece de maneira diferente. O eu-lírico assume uma postura que não representa o comportamento de uma metade perdida, mas sim de um sujeito ironicamente desiludido diante do amor: “Exijo respeito, não sou mais um sonhador, chego a mudar de calçada quando aparece uma flor e dou risada do grande amor”.


Entretanto, é com Cambaio que a transformação torna-se clara. “O medo que nós temos não é da separação, mas sim da dependência, e de depender do parceiro ao ponto de depois não conseguir sair do relacionamento”, explica Brunna. Na canção, Chico Buarque critica a nova “atitude” feminina: “vejo fulana a festejar na revista, vejo beltrana a bordejar no pedaço” (...) “eu sou mais as putas”.


Mudam-se as formas de relacionamento, mas o ideal de um amor eterno persiste. Em Sempre, última canção analisada, Brunna identificou claramente o desejo contido no imaginário simbólico por um relacionamento baseado no ideal romântico. “Nessa letra, Chico Buarque resgatou a idéia de que o amor é eterno e vai superar gerações, o que mostra que apesar da sociedade manter relações cada vez mais descartáveis, o desejo íntimo do sujeito é o de construir uniões sólidas”.

 

As canções analisadas

Cotidiano (1971)
Pedaço de mim (1977-78)
Eu te amo (1980)
Amor barato (1981)
Meu namorado (1982)
Samba do grande amor (1983)
Todo sentimento (1987)
Futuros amantes (1993)
Cambaio (2001)
Sempre (2006)