Graciliano Ramos, Dostoiévski, Candido Portinari e Vittorio De Sica. Além do caráter artístico de suas produções, o que esses autores de literatura, pintura e cinema teriam em comum? Para o campo da literatura comparada, existe um universo de possibilidades analíticas que aproximam ou distanciam criadores das mais diversas áreas e suas obras, seja em termos de linguagem, gênero, intertextualidade, estética, representações e temáticas.
Mas o que é a literatura comparada? Essa é uma pergunta que motiva boa parte das discussões do campo, e que permanece sem resposta definitiva. Se, em um primeiro momento, os estudos giravam em torno da compreensão das relações estabelecidas entre literaturas e autores de diferentes nacionalidades, atualmente as pesquisas vão muito além.
“Literatura comparada é um conceito amplo que, hoje em dia, quer dizer várias coisas ao mesmo tempo. Existe a linha mais tradicional, que compara literaturas nacionais, mas há também a comparação entre culturas diferentes de um mesmo país, e ainda entre grupos e lugares teóricos diversos”, observa o coordenador do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da UnB, Pedro Mandagará.
Ao longo de mais de um século, as pesquisas na área se ampliaram e se enriqueceram a partir de uma abordagem multidisciplinar, que envolve desde teorias literárias até conhecimentos de outras áreas, como Comunicação, Sociologia, Artes e Filosofia. Temáticas contemporâneas presentes nas diferentes literaturas, seja aquelas consagradas por tradição ou as produzidas por grupos minoritários, também motivam a produção científica de base comparativa.
INTERLOCUÇÃO – Nas páginas de notícias, na dramaturgia, na dança, no cinema, na fotografia, na poesia. A literatura está presente nas mais diversas textualidades contemporâneas e interage com uma multiplicidade de mídias e suportes, por onde circula uma gama de significações e temáticas, levadas aos quatro cantos do mundo.
A professora Anna More, do Programa de Pós-Graduação em Literatura (Póslit) da UnB, considera que é dessa diversidade de formatos e discursos que emergem os estudos comparativos. “Em toda a história da humanidade, a literatura está integrada em práticas e contextos sociais, dialogando com outros campos e mídias”, afirma.
Essa aproximação é constatada em suas pesquisas mais recentes orientadas no âmbito do Póslit. Há quase 20 anos, o programa possui uma linha de pesquisa específica sobre literatura comparada.
Tendo como pano de fundo o resgate do passado histórico das Américas, Anna More faz uma investigação comparativa de textos literários e documentais sobre a escravidão nas colônias do continente durante os séculos XVI e XVII. Iniciado há seis anos, o projeto de pesquisa foca nas interações estabelecidas entre tradições nacionais e linguísticas no processo de colonização. Para isso, a pesquisadora observa os recursos de linguagem empregados nos relatos históricos, como as metáforas e a poética.
“O auge da escravidão ocorreu no período da união das coroas de Portugal e Espanha. Então, espanhol e português se misturavam muito nesse contexto do tráfico negreiro. É impossível dar conta de uma questão global como essa sem fazer uma pesquisa comparada”, declara Anna More.
Diálogos entre literatura e outras artes também inspiram pesquisas do Póslit. Muitos não sabem, mas a obra do renomado escritor francês Victor Hugo ultrapassa a produção literária. O ato de incorporar diferentes artes em seus romances é explorado na tese do pesquisador Dennys Silva-Reis. Defendida em junho deste ano, a pesquisa foi orientada pelo professor Sidney Barbosa.
Dennys analisa como é a relação entre diferentes modalidades artísticas em dois romances de Victor Hugo. As ilustrações presentes em Trabalhadores do Mar, por exemplo, são do próprio autor. Parte foi concebida previamente ao livro, no período em que esteve exilado na Ilha de Guernsey, ao norte da região francesa da Normandia. Gravuras, esculturas e design de móveis eram outras formas de expressão próprias do artista que dialogavam com suas produções literárias.
“Ele era um tradutor interartístico. A questão da arte e de ele se expressar em várias plataformas e modalidades era uma coisa inerente a Victor Hugo, fazia parte da vida dele”, reitera Dennys. Da mesma forma, a obra do francês influenciou diferentes produções artísticas e midiáticas mundo afora. É o caso do romance Notre-Dame de Paris, que ganhou adaptações para cinema, ópera, balé e até desenho animado. “Todos os dias no mundo, uma nova criação do Victor Hugo é traduzida, adaptada ou recriada em outras modalidades artísticas. Ele talvez seja um dos autores mais traduzidos no mundo”, acrescenta Sidney Barbosa.
HISTÓRICO – A literatura comparada surgiu como disciplina na Universidade de Lyon, na França, em 1887. Mais de 20 anos depois, foi a vez da Universidade de Sorbonne criar uma cátedra na área. Pedro Mandagará conta que as primeiras pesquisas universitárias associavam o estudo à literatura mundial.
“Naquele momento, o mundo estava se expandindo. Na Europa, começava-se a ler os clássicos da literatura sânscrita. O que vinha da Índia, Japão e China estava sendo traduzido. E os intelectuais passam a enxergar a literatura para além da língua e da nacionalidade, num aspecto mais abrangente”, explica.
Sob influência do positivismo, os estudos se limitavam à interação entre obras e autores de diferentes línguas e países. “A disciplina se baseava no estudo de fontes e influências, ou seja, como um escritor de determinada literatura nacional influenciava um autor ou literatura de outro país”, confirma João Vianney, também professor do Departamento de Teoria Literária e Literaturas. Um exemplo é o estudo sobre a repercussão de autores franceses no Brasil.
Essa perspectiva passou a ser problematizada em meados do século XX. Aos poucos, o campo absorveu conceitos da semiótica – voltada ao estudo da construção dos significados – e do estruturalismo – corrente do pensamento que se propõe a compreender a realidade social a partir de sistemas ou estruturas abrangentes.
Pedro Mandagará explica que, a partir dali, a literatura comparada começa a pensar a relação entre diferentes tradições literárias, com base em quesitos como a intertextualidade, ou seja, a interação entre diferentes textos e a interferência no processo criativo. “Com a intertextualidade, esses textos, mesmo que distantes no tempo, são colocados lado a lado em termos críticos”, afirma.
O professor João Vianney acrescenta que essa nova percepção também incluía a análise de afinidades nas características dos textos, mas que não necessariamente derivassem de uma interação entre eles. “Por exemplo, havia pesquisas sobre sociedades com organização econômica e social semelhantes e com obras literárias que mostravam uma certa afinidade, mas sem deixar de explorar suas diferenças e especificidades”, complementa.
Décadas depois, tendências do pensamento contemporâneo foram incorporadas aos estudos em literatura comparada e estimularam a construção de novos olhares sobre as obras e seus autores. Dessa vez, o foco estava nas tradições à época esquecidas pela crítica literária. É o caso das escritas de afrodescendentes, de imigrantes e de minorias, como indígenas, mulheres e LGBTs.
INTEGRAÇÃO – No Brasil, os estudos comparativos consolidaram-se com autores, como Antonio Candido, sociólogo e crítico literário, e com a criação da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), em 1986. A entidade foi instituída para congregar pesquisadores e fortalecer a área do conhecimento.
A UnB sedia o XXVI Congresso Internacional da Abralic entre 15 e 19 de julho. Pesquisadores, estudantes, escritores e interessados na área participam da programação e discutem temáticas diversas que dialogam com o campo de investigação. Conferências com nomes de destaque na área, mesas-redondas e simpósios temáticos marcam a programação, distribuída por diversos pontos do campus Darcy Ribeiro.