Desde que era pequena, os pais sabiam que Ana Paula Rodrigues da Silva tinha alguma deficiência, mas o diagnóstico correto levou mais de dez anos. “Alguns médicos diziam que era dislexia, outros tratavam como uma espécie de autismo, embora na época não fosse tão difundido assim”, conta a mãe, Célia Amaral. Foi somente em 2005, já na adolescência, que Ana Paula fez um teste de QI e foi diagnosticada com retardo mental leve.
A demora na identificação da deficiência de Ana Paula, somada à falta de políticas públicas inclusivas educativas, dificultou sua vida escolar. Ela só foi participar de fato de uma turma regular quando fez o curso técnico no Instituto Federal de Brasília (IFB). Formada em Gestão Pública, atualmente cursa a segunda graduação, em Psicologia, na UnB.
O caso de Ana Paula não é isolado. Muitos passam pela mesma dificuldade. A falta de uma avaliação correta muitas vezes impossibilita que pessoas com deficiência acessem seus direitos. Hoje existem mais de 20 tipos de políticas públicas nacionais para essa população. Dentre elas, podem ser destacadas a delimitação de cotas nas empresas e no ensino superior, a concessão do passe livre interestadual e a compra de carro com desconto de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI).
Embora essas garantias sejam previstas em lei, o Brasil não possui um padrão de avaliação da deficiência que possibilite identificar se a pessoa com deficiência tem direito a determinados benefícios. É justamente com esse propósito que a UnB está protagonizando uma pesquisa que valida um instrumento único para avaliação da deficiência no país.
A iniciativa deriva da Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência (SNDPD), vinculada ao atual Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), mediante carta-acordo entre a Universidade de Brasília e a Organização dos Estados Ibero-Americanos (OEI).
Coordenado pelo professor Éverton Pereira, do Departamento de Saúde Coletiva (DSC) da Faculdade de Ciências da Saúde (FS), o projeto de natureza multidisciplinar envolve pesquisadores de outras unidades e também de outras instituições: Heleno Correa Filho e Edgar Merchan-Hamann, do DSC; Lívia Barbosa, do Departamento de Serviço Social; Gladston Luiz da Silva, do Departamento de Estatística; Marineia Crosara de Resende, do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU); Ana Rita de Paula, doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e consultora independente do projeto; William Rosa de Souza, consultor do projeto em engenharia de dados.
HISTÓRICO – Sancionada em 2015, a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146) prevê uma série de medidas para assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais da pessoa com deficiência. A normativa contempla a elaboração de instrumento único de avaliação, que deve seguir uma perspectiva “multiprofissional, interdisciplinar e biopsicossocial”.
Segundo Éverton Pereira, esse movimento existe desde a promulgação dessa lei, mas a pesquisa teve início antes disso. “Nós começamos a trabalhar com instrumentos de avaliação da deficiência em 2013 com o objetivo de validar o Índice de Funcionalidade Brasileira (IF-Br)”. O docente refere-se ao índice elaborado em 2009 por um grupo de pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por encomenda do governo federal.
Com a Lei Complementar nº 142/2013, que passou a garantir a redução do tempo de contribuição para trabalhadores do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) para pessoas com deficiência, o documento passou a ser utilizado pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) para conceder o benefício de acordo com o grau da deficiência – leve, moderada ou grave. Entre 2013 e 2015, a UnB foi convidada pelo antigo Ministério da Previdência Social para testar e validar esse índice.
SOBRE O ÍNDICE – O IF-Br é baseado na Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) e na Medida de Independência Funcional (MIF). “A CIF é um dos instrumentos de mensuração de deficiência, e a MIF é bastante utilizada para mensurar a autonomia/dependência das pessoas com algum tipo de restrição funcional”, explica Pereira.
A recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS), no Relatório Internacional sobre Deficiência, publicado em 2011, é que os países membros da Organização das Nações Unidas (ONU) devem adotar a CIF como instrumento de modo a unificar todas as linguagens dos instrumentos em nível internacional.
“Trata-se de um dos mais completos relatórios lançados até hoje. No mundo se usam diferentes instrumentos de avaliação, se todos adotassem uma mesma linha, seria possível até comparar dados”, avalia o professor do Departamento de Saúde Coletiva da UnB.
A CIF é muito ampla e de difícil uso. Portanto, a própria OMS indica um checklist para extrair os principais elementos. Com isso, o grupo da UFRJ definiu 41 instrumentos com base na CIF pontuados em quatro escalas, em conformidade da categorização da MIF.
Como passou a ser utilizado pelo INSS e tomou dimensão nacional, ele ficou conhecido como IF-BrA, Índice de Funcionalidade Brasileira aplicado para fins de aposentadoria da pessoa com deficiência, avaliado por um médico perito e um assistente social. Em 2016, a UnB entregou um relatório final de validação do IF-BrA que, além das análises estatísticas, entrevistou os profissionais avaliadores do Instituto e pessoas com deficiência que passaram pela avaliação.
METODOLOGIA – O processo deu-se em três fases de validação: conteúdo, face e acurácia. A primeira refere-se à avaliação de conteúdos expressos no instrumento por especialistas da temática. Na segunda etapa, a pesquisa qualitativa busca apontar como se dá a utilização, a adaptação e a compreensão cultural e histórica do instrumento pelas pessoas envolvidas. A terceira e última fase, de natureza quantitativa, é a validação do instrumento em uso, ponderando se ele é sensível e específico o suficiente para garantir critérios de justiça.
Na ocasião, foram entrevistadas pessoas com deficiência e profissionais do INSS (médicos peritos e assistentes sociais) de todas as regiões do Brasil. A validação estatística englobou 17 mil casos. “O relatório da UnB indicou uma mudança na régua do grau de deficiência. No nosso ponto de vista deveria aumentar um pouco o grave e o moderado, e estreitar o leve”, pontua Éverton Pereira.
Embora a sugestão não tenha sido acatada, a SNDPD novamente convidou a UnB, em 2017, para validar, como responsável técnico-científica, o IF-Br para todas as políticas públicas. “O primeiro estudo foi limitado, pois só contemplou trabalhadores, que é um número muito restrito de pessoas com deficiência que ingressaram no mercado de trabalho. Excluiu crianças, idosos e outros tipos de deficiência”, informa.
Esta carta-acordo tinha validade até janeiro de 2019, mas em função de mudanças e da desconfiguração dos ministérios envolvidos, o prazo acabou sendo prorrogado, e o trabalho deve ser finalizado em julho. Em 2018, o governo criou o Comitê do Cadastro Nacional de Inclusão da Pessoa com Deficiência e da Avaliação Unificada da Deficiência, formado por representantes dos ministérios. Com isso, o IF-Br foi reorganizado a partir das expectativas das políticas públicas.
“Os técnicos das políticas avaliaram que algumas questões não eram sensíveis para algumas das particularidades dos seus públicos”, relata Pereira. Portanto, o documento incluiu mais 16 atividades retiradas da CIF, totalizando desde então 57, passando a ser intitulado IF-BrM, Índice de Funcionalidade Brasileira Modificado.
Nessa nova validação, foi firmada em 2018 uma parceria com o Ministério da Saúde para a coleta de dados. O levantamento está sendo feito em 14 municípios de todas as regiões em serviços de saúde vinculados ao ministério: os Centros Especializados em Reabilitação (CER), os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), instituições da rede de cuidado da Coordenação da Pessoa com Deficiência e também da atenção básica.
GARANTIA DE DIREITOS – Segundo a mais recente estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base no Panorama Nacional e Internacional da Produção de Indicadores Sociais, cerca de 6,9% da população brasileira são pessoas com deficiência. Antes, o número utilizado era de 23%. O modelo atual inclui a perspectiva social da deficiência.
Estudante de Pedagogia da UnB, Guilherme da Silva Bittencourt tem baixa visão e somente na maioridade foi ter noção de seus direitos como pessoa com deficiência. Na maior parte da vida escolar, Guilherme teve dificuldades nos estudos por não conhecer recursos de acessibilidade que poderiam lhe dar maior autonomia no processo de aprendizagem.
“As possibilidades que me ofereciam eu considerava meio que vexatórias, pois na maioria das vezes elas me expunham diante dos meus colegas. Somente quando fui prestar o vestibular é que passei a conhecer novas ferramentas, como o uso de áudio para assimilar os conteúdos”, conta.
Sua maior surpresa, no entanto, foi na Universidade, quando foi contatado pela Coordenação de Apoio às Pessoas com Deficiência (conhecida pela sigla PPNE) logo no primeiro semestre. “Como tinha solicitado atendimento específico no vestibular, eles me chamaram para uma reunião e me explicaram todos as possibilidade de apoio que a instituição oferece. Desde então, passei a olhar de uma forma diferente, mais ativa, na verdade”.
Na opinião de Guilherme, um modelo de avaliação da deficiência em todo o país deve englobar a complexidade dos tipos e as limitações de cada indivíduo. “Só na baixa visão, a diferença é gritante entre os tipos. Tem pessoas que conseguem ler um texto desde que esteja com as letras ampliadas, ou com as cores invertidas, já no meu caso o mais indicado é o uso de áudio”, menciona.
Coordenadora do PPNE, Thaís Imperatori acredita que o modelo único de avaliação poderá ser usado como instrumento para acesso ao ensino superior, pois permitirá compreender de forma mais ampla as barreiras vivenciadas por pessoas com deficiência no cotidiano educacional.
“Uma grande dificuldade é a formação dos professores universitários, uma vez que mestrado e doutorado não contemplam conteúdos de didática e educação inclusiva”, frisa. Thaís também afirma que as barreiras que dificultam a permanência de estudantes com deficiência na educação superior são de diversos tipos, como físicas, atitudinais ou comunicacionais.
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MODELO BIOPSICOSSOCIAL – Foi somente em 2009, a partir da Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, que o conceito de deficiência passou do modelo biomédico, centralizado na doença e nas limitações do corpo, para o biopsicossocial, que compreende, além do impedimento, as barreiras socioambientais e atitudinais.
Atualmente, há dois embates marcantes nesse processo: a exigência da presença de um médico e a supremacia do biológico sobre o psicossocial. O professor Éverton Pereira ressalta que o índice apresenta mais do que uma forma de avaliação, ele trabalha e divulga o modelo biopsicossocial.
“Nossa defesa é de que qualquer profissional de saúde, desde que capacitado, está apto para fazer avaliação da deficiência. Isso não deve ser feito só por um tipo de profissão, mas por profissionais com formações e conhecimentos técnicos diferentes”.
Sob sua ótica, há disputas no que se refere a avaliação e o modelo biopsicossocial e multiprofissional. “Trata-se de uma mudança de paradigma, que precisa de um olhar ampliado e integral”, complementa.
Ana Paula Rodrigues, apresentada no início desta reportagem, estuda sobre a importância de uma equipe multiprofissional e considera isso essencial sobretudo no cuidado da pessoa com deficiência. “A visão de diferentes profissionais possibilita que juntos criem um plano de apoio para aquela pessoa de acordo com suas necessidades”, pontua.
Para a estudante, que já atua ao lado de um profissional no Centro de Atendimento e Estudos Psicológicos (Caep), a formação em Psicologia lhe possibilitará ajudar outras pessoas e sua experiência de vida servirá de lição e exemplo. “Eu passei a me interessar sobre a minha deficiência e quis buscar mais informação. Com isso, espero mostrar-lhes que há caminhos e que não devem desistir dos seus sonhos”, conclui.