Há duas décadas, o estudo das diferenças e das formas de inclusão no contexto escolar são temas de pesquisa para a doutora em Educação Sílvia Ester Orrú. Docente da Faculdade de Educação (FE) da UnB, ela lançou, em 2017, o livro O re-inventar da inclusão: os desafios da diferença no processo de ensinar e aprender. Um ano depois, em julho de 2018, a obra obteve reconhecimento mundial em congresso da Comunidade Internacional de Educação e Aprendizagem, realizado na Université Paris Diderot, na França.
A obra foi indicada ao Prêmio Internacional de Ensaio em Educação e Aprendizagem a partir de sugestão da professora Maria Teresa Eglér Mantoan, orientadora de Sílvia no pós-doutorado. Foi ela quem apontou o potencial do estudo, sobre o conceito de diferença para se pensar a inclusão, como divisor de águas. Com adaptações na forma da escrita, a autora publicou o livro. “Para minha surpresa e alegria, acabou recebendo este reconhecimento”, diz Sílvia. “Um comitê científico da Europa reconhecer a obra de uma brasileira, jovem, na terra de Deleuze. Não tenho orgulho nem vaidade, mas fiquei muito feliz”, admite.
O livro se debruça sobre o processo de inclusão nas escolas. Apesar das legislações vigentes, pensadas para que alunos com deficiências tivessem acesso e permanência nas escolas, a investigação mostrou que muitos sofrem uma pseudoinclusão: embora tenham acesso físico à escola, falta o acolhimento, responsável por promover o sentimento de pertencimento ao grupo.
Entre 2015 e 2016, a pesquisa sobre o conceito de diferença acompanhou pessoas de perfis diversificados: uma diretora de escola, uma professora, e uma turma de 25 crianças, com idades entre 6 e 7 anos. Na turma, havia um acriano, três alunos autistas, uma imigrante negra adotada – vinda de Guiné-Bissau –, e trigêmeos, um deles com paralisia cerebral. “Essa sala de aula já foi de uma riqueza tremenda”, considera Sílvia.
Por promover a integração entre alunos por meio de projetos, a escola que a docente escolheu para fazer as entrevistas permite que todas as crianças, mesmo com autismo ou outras dificuldades, participem de atividades em comum. Como a inclusão adotada ali acontece independentemente das diretrizes da legislação, se encaixa em um conceito desenvolvido pela própria pesquisadora: inclusão menor. O termo foi inspirado na obra Kafka: por uma literatura menor, de Deleuze e Guattari, filósofos franceses.
Para Sílvia Orrú, a inclusão menor se move mais por iniciativa das pessoas do que por uma instituição formal. “Ela parte da própria crença, como uma filosofia de vida, de que todos são diferentes, de forma que temos de abraçar essas diferenças”, explica a pesquisadora. “A escola investigada conhece esse conceito de inclusão porque vive isso”, observa, reforçando que, em muitas escolas tradicionais, estudantes com deficiências são deixados de lado.
Além do grupo citado, Sílvia entrevistou em sua pesquisa uma mulher com Síndrome de Down, um juiz, um ex-presidiário, uma mulher com Esclerose Múltipla, uma mãe de filho autista e uma filha de imigrante. Nas entrevistas, a pesquisadora não intervia com seu próprio conceito de diferença. A experiência revelou que as crianças possuíam uma ideia de diferença mais bem constituída que os adultos. Para estes, a diferença se dava por rótulos: cor, origem, profissão. Já para as crianças, o entendimento era mais simples: tudo era diferença – cabelo, formato do olho, estatura.
A proposta do livro premiado parte do pressuposto de que todos são diferentes, e por isso é necessário contemplar a necessidade de todos e cada um, inclusive daquele estudante que não tem um diagnóstico ou laudo de situação especial. “O objetivo é promover uma revolução no sentido de compreender o outro”, resume. Assim, Sílvia propõe o abandono das adaptações, que mudam o que já existe buscando atender o diferente. Em lugar disso, seria necessário promover uma compreensão geral sobre o valor da heterogeneidade.
Apesar dos desafios para o avanço, entre os quais o preconceito é um dos principais, Sílvia se mantém otimista. Em boa parte, pelo exemplo positivo com o qual conviveu durante a pesquisa. “A convivência com a diferença permite às crianças vivenciar a mudança de concepção e isso é levado para casa. Assim, o pai e a mãe que antes olhavam de longe a criança com alguma deficiência, por exemplo, começam a ver o outro com esse olhar acolhedor”, entende. “Elas semeiam e os adultos vão fazer as escolhas. Essas crianças indicam a possibilidade de serem futuros adultos mais acolhedores. Vão olhar, perceber e não ignorar”, vislumbra a autora.
IDEIA EM EXPANSÃO – Sílvia Orrú sabe que o bom exemplo descrito na obra premiada não é regra. “Ao mesmo tempo em que temos escolas como a citada do livro, temos outros espaços e escolas que não querem fazer a inclusão acontecer”, reconhece. Entre um exemplo e outro, a autora vê a presença da Lei n. 9.394/96, que estabeleceu as diretrizes e bases da educação nacional. “Ouço críticas sobre a lei, afirmando que veio de cima para baixo, que a escola não foi ouvida. Mas entendo que, se a lei não existisse, os estudantes continuariam de fora até hoje. Então, entendo que estamos em um caminho de crescimento e, certamente, melhores hoje do que se estivéssemos em 1996, antes da Lei de Diretrizes e Bases”, afirma.
A docente consegue apontar outros pontos de avanço vivenciados na prática, não apenas em escolas, mas também nas universidades. “Pesquisas já se preocupam em estudar o universitário com autismo, com surdez, a carreira profissional da pessoa com surdez, entre outros aspectos relacionados ao tema”, cita. Para ela, o Programa de Apoio às Pessoas com Necessidades Especiais (PPNE) da UnB e o trabalho da Faculdade de Educação (FE) sobre inclusão colocam a Universidade de Brasília como referência na área.
No momento, os estudos reunidos em O re-inventar da inclusão se desdobram no trabalho desenvolvido por Sílvia em Poços de Caldas, onde atua como professora colaboradora da Universidade Federal de Alfenas (Unifal). Além de estudantes da educação, mães, professores, psicólogos e profissionais da saúde se reúnem no Laboratório de Estudos e Pesquisas em Aprendizagem e Inclusão (Lepai) para troca de impressões sobre o assunto. A página do grupo de pesquisa na internet avisa quando haverá novas reuniões mensais, sempre abertas para a comunidade.