A pergunta é simples: que animal faz ninho? A resposta que vem imediatamente à cabeça é: passarinho! Isso segue verdade, mas essa característica não é exclusiva das aves. Desde o final dos anos 1970, no mundo da zoologia, já se sabe que peixes também podem ter esse comportamento.
Mas, se antes o conceito de ninho para esses animais se restringia a um lugar para botar ovos, sem maiores alterações no local, hoje ele leva em consideração o ato de nidificar e a função que esses abrigos podem ter em cada contexto em que são construídos.
Todas essas mudanças de entendimento e esta redefinição estão presentes no artigo Integrative approach on the diversity of nesting behaviour in fishes (Abordagem integrativa sobre a diversidade no comportamento de nidificação em peixes, em tradução livre para o português), de autoria do professor de Zoologia da Faculdade UnB Planaltina (FUP) Eduardo Bessa, e das pesquisadoras da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Manuela Brandão e Eliane Gonçalves de Freitas.
Recém-publicado no periódico internacional Fish and Fisheries, o trabalho elenca 40 famílias de peixes nidificadores e descreve os diferentes tipos de ninhos, com suas diversas funções.
“O Balon [Eugene K. Balon, autor do conceito original, publicado ainda na década de 1970] descreve ninho como uma estrutura que o peixe constrói para colocar e cuidar de ovos”, relembra o professor.
“Nós estendemos a definição mais para o comportamento do que para a estrutura, ampliamos a noção de que serve apenas para o cuidado parental, passando a servir também para proteção, sinalização social e seleção sexual, e também colocamos ninhos em rocha limpa como ninhos, enquanto o Balon apenas considerava que o animal escolhia o local para desovar, sem modificá-lo”, pontua Eduardo Bessa.
O comportamento de nidificação é desencadeado por eixos hormonais que envolvem o hipotálamo, a hipófise e as gônadas. Mas muito pouco se conhece até hoje sobre os circuitos cerebrais envolvidos na nidificação dos peixes.
A maioria das espécies de peixes não produz ninhos, mas essas estruturas foram encontradas nesses animais desde as primitivas lampreias, que não têm mandíbula e constroem seus abrigos com pedras, que carregam por meio de sua ventosa oral.
“Peixes podem construir ninhos em forma de cumbuca, como as traíras e as tilápias; e podem cavar profundas tocas, como as piramboias e alguns cascudos. Eles podem usar material vegetal, como os esgana-gatos, comuns nos rios europeus, e os camboatás, mais comuns aqui no Brasil; ou usar material animal, como as anêmonas do peixe-palhaço ou conchinhas usadas por alguns ciclídeos [peixes de água doce] africanos. Há também ninhos feitos unicamente com espuma produzida pelos adultos, como os conhecidos ninhos de bolhas dos bettas. Por fim, alguns ninhos são unicamente superfícies de rochas preparadas pelos adultos para receber os ovos”, afirma o docente.
ASPECTOS DISTAIS E PROXIMAIS – Segundo Eduardo Bessa, o artigo traz, pela primeira vez, um resumo do papel dos ninhos em aspectos distais – que analisam as vantagens e desvantagens evolutivas dos comportamentos dos peixes – e proximais – em que o foco é a fisiologia, o aprendizado e os circuitos neuronais envolvidos nessas ações.
“Existem as explicações proximais, que se dedicam a entender por que aquele indivíduo constrói o ninho: quais os mecanismos de ativação hormonal ou neural que resultam na construção do ninho? Como o indivíduo aprende a construir o ninho? Por outro lado, existem as explicações distais, que se dedicam a entender como o comportamento de nidificação, por exemplo, evoluiu: quais as relações de parentesco entre as espécies nidificadoras? Quais as vantagens evolutivas de fazer ninhos?”, detalha o professor de Zoologia da FUP.
No trabalho, Bessa se dedicou, sobretudo, aos aspectos distais, evolutivos, e a coautora Manuela Brandão, aos proximais, fisiológicos. “A maioria dos pesquisadores atua em uma dessas áreas só. Foi necessário que a Eliane [Gonçalves de Freitas], com quem nós dois já trabalhamos, nos juntasse para que o artigo trouxesse esse plus de abordar a nidificação em peixes com os dois pontos de vista”, comenta.
CURIOSIDADES – O ninho pode fazer com que o próprio adulto ou o filhote se proteja de um predador, sinalizar o status social daquele nidificador, ou ainda servir como foco de atenção da fêmea na hora de escolher parceiro.
“Um ninho bem construído, com maior complexidade estrutural, ao longo do processo evolutivo acabou se correlacionando com machos com maior aptidão física ou fisiológica, por exemplo. Em outras palavras, ninhos mais complexos revelam machos mais complexos. De uma forma não pensada, as fêmeas acabam preferindo reproduzir com esses machos, pois a prole desses machos provavelmente terá ‘maior qualidade’”, explica Manuela Brandão.
Em relação à durabilidade dos ninhos de peixes e ao cuidado com seus abrigos, a pesquisadora da Unesp afirma que eles não costumam considerar os ninhos casas definitivas, mas com a duração necessária à função para que estes foram construídos.
“Pensamos em ninhos mais efêmeros do ponto de vista nosso, humano, mas para os peixes que constroem esse tipo de ninho, ele está perfeitamente adaptado a cumprir sua função, a proteger a prole, etc. Na história evolutiva daquela espécie, esse ninho foi selecionado em detrimento de qualquer outro tipo”, esclarece a coautora do artigo.
“Esse tipo de ninho vai servir ao seu propósito final para aquela espécie, seja ‘ser bonito’ para mostrar que o macho tem que ser escolhido em detrimento dos demais, seja para ambos os pais poderem cuidar melhor dos alevinos, seja para os ovos não ressecarem. Essa é a beleza da biologia... cada coisinha na natureza tem um porquê de ser como é”, complementa Manuela Brandão.
O artigo também aponta os custos da nidificação em peixes. Por exemplo, os ninhos podem atrair predadores e pescadores, que usam essas estruturas como pista da presença das presas, ter a manutenção trabalhosa e ainda apresentar a necessidade de migrar para outros sítios de nidificação.
“Acho que quando mostramos que peixes também constroem ninho, que esses ninhos têm finalidades complexas, como cuidado parental, refúgio, seleção sexual, e quando essa informação sai da academia, isso contribui para as pessoas terem mais cuidado com os animais não humanos”, arremata a pesquisadora.