Questionado por alguns cientistas, defendido por outros, o Antropoceno, também conhecido como a “Época dos Humanos”, volta ao debate em artigo publicado na Science Advances com colaboração de pesquisador da UnB. O estudo aponta evidências que corroboram a hipótese de que este novo período geológico está em curso. Mas você sabe ao certo o que é o Antropoceno? O termo apareceu pela primeira vez no início dos anos 2000, por proposição do químico Paul Crutzen e do biólogo Eugène Stoermer, em um boletim do Programa Internacional Biosfera-Geosfera.
A teoria propõe que as atividades humanas no último século têm causado profundas transformações ambientais e biofísicas no planeta Terra, incluindo a remodelagem da distribuição da biodiversidade em larga escala. No entanto, a definição do Antropoceno como era geológica ainda não é reconhecida pela Comissão Internacional de Estratigrafia, subcomitê científico da União Internacional de Ciências Geológicas que padroniza questões relacionadas à geologia.
Para validar a possível emergência deste período, cientistas utilizam marcadores biológicos capazes de fornecer pistas sobre seu início. Os registros fósseis são um exemplo, já que guardam a memória geológica da Terra. A pesquisa recém-publicada na Science Advances, liderada por cientista do Museu Nacional de História Natural de Paris, na França, e com parceria do Departamento de Ecologia da UnB, do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) e do Instituto de Pesquisas para o Desenvolvimento (IRD) – os dois últimos também na França –, sugere o início do Antropoceno a partir do fluxo intenso de introduções de espécies de peixes de água doce.
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O estudo aponta que, devido à ação humana, a introdução de espécies de peixes em bacias de drenagens das quais não são nativas teria afetado a conformação das chamadas Zonas Biogeográficas.
Trata-se de áreas onde os organismos presentes compartilham uma história evolutiva única por conta do isolamento, ao longo de milhões de anos, das zonas e das barreiras naturais que impedem a dispersão dos organismos entre elas. Por isso, cada uma das seis Zonas Biogeográficas naturais do planeta possuem espécies aparentadas, com ocorrência natural somente naquela região.
“O homem está levando espécies para todos os cantos do planeta e misturando a fauna. Basicamente, ele está colocando as espécies dentro de um pote, chacoalhando, e tudo está saindo muito mais parecido por conta dessa mistura de fauna nos ecossistemas aquáticos”, explica o professor do Departamento de Ecologia da UnB, Murilo Sversut Dias, único brasileiro a assinar o artigo.
“A gente já sabe que os humanos têm promovido diversas mudanças nos ecossistemas, seja em escala local ou regional. De maneira geral, o ‘homem’ tem extinto espécies localmente, introduzido outras espécies e as faunas têm ficado cada vez mais similares. Esse processo é conhecido como homogeneização biótica. Mas foi impressionante ver o quanto esse processo está modificando as Zonas Biogeográficas naturais para peixe de água doce em escala global, e o resultado do estudo foi inédito por isso”, expõe o pesquisador.
BIOGEOGRAFIA TRANSFORMADA – Se durante sua história evolutiva, a Terra caminhou para o desenho de seis Zonas Biogeográficas distintas – Neártica, Neotropical, Paleártica, Etíope, Sino-Oriental e Australiana –, segundo a pesquisa, a modificação da distribuição global dos peixes de água doce pelos humanos contribuiu, no último século, para a junção de algumas dessas zonas. Agora, essas grandes zonas são divididas em apenas quatro.
“O que a gente encontrou foi que as extinções e, principalmente, a introdução de espécies não nativas acabam homogeneizando uma grande área, que a gente denominou de PAGNEA [Pan-Antropoceniano Norte e Leste Asiático Global]. Essa zona pega a América do Norte inteira, grande parte da Eurásia, uma parte da Austrália e o finalzinho da América do Sul (Chile e Argentina). Todas estas áreas ficaram muito mais parecidas entre si”, salienta Murilo, sobre o novo agrupamento das zonas Neártica, Paleártica, de parte da Sino-Oriental e da Australiana.
“Tudo isso é resultado da simplificação e homogeneização da fauna a partir de espécies norte-americanas, europeias, asiáticas, ou, às vezes, até espécies africanas, que são espalhadas pelo mundo e colocadas em várias bacias de drenagem onde originalmente elas não ocorriam”, completa o docente.
IMPACTO NOS ECOSSISTEMAS – Os resultados publicados no artigo são fruto de análise de dados de mais de 11 mil espécies de peixes de água doce distribuídas em mais de 3 mil bacias hidrográficas em todo o mundo. A ideia era comparar a distribuição dessas espécies e das Zonas Biogeográficas antes e depois da introdução de espécies exóticas – ou seja, daquelas que não eram nativas de uma bacia – e da extinção de espécies, sobretudo, pela ação humana.
Os pesquisadores identificaram 6.223 eventos de introdução em bacias de drenagens envolvendo 453 espécies desde o século XIX. Dessas, 88 espécies foram introduzidas amplamente em mais de dez bacias ao redor do mundo.
Além disso, 83% das espécies introduzidas originaram-se principalmente de três regiões biogeográficas: da região Neártica (compreende a América do Norte e o norte do México), da Paleártica (que engloba a Europa Ocidental, o Oriente Médio e toda a extensão da Rússia) e da região Sino-Oriental (inclui o sudeste asiático, Índia até Bornéu, a maior parte da China, Mongólia, Coreia do Sul e Japão). A região Neotropical (engloba a América Central e do Sul) é uma das menos afetadas pelas introduções, mas algumas bacias como a do Prata (Paraná-Paraguai) possuem diversos registros de espécies não nativas.
Na lista de espécies de peixes introduzidas em bacias no mundo todo, constam as carpas europeias (Cyprinus carpio) e asiáticas (Ctenopharyngodon idella); o peixinho dourado (Carassius auratus), de origem chinesa; o guppy (Poecilia reticulada), endêmico do norte da América do Sul; a gambúsia (Gambusia affinis), nativa da América Central e do Norte, atualmente comum em todos os continentes do planeta e adotada no combate ao vetor da malária; e a tilápia do Nilo (Oreochromis niloticus), nativa da África e hoje facilmente encontrada, por exemplo, no Brasil.
Murilo S. Dias alerta que a introdução de peixes de água doce em rios onde não são nativos pode trazer aos ecossistemas e às cadeias alimentares aquáticas consequências diretas, como predação de ovos e larvas de espécies nativas, ou indiretas, como alterar o balanço de nitrogênio e a disponibilidade de fósforo.
Isso é o que ocorreu com uma espécie de cascudinho, também conhecida como ‘limpa-vidro’, peixe originário da América do Sul deslocado para algumas bacias de drenagens no México. Lá, a espécie tornou-se altamente abundante nos corpos d’água pela ausência de predadores e reduziu drasticamente os níveis de fósforo disponível na água. Essas introduções degradam os ambientes e modificam o balanço dos ecossistemas naturais.
O docente da UnB contextualiza que essa mudança no ambiente, causada pela introdução de espécies exóticas, também está atrelada à própria conservação das bacias. “Na América do Sul, em rios que são mais íntegros, como o Amazonas, por exemplo, as espécies exóticas têm mais dificuldade de se estabelecer quando existem localmente outros competidores e quando o ecossistema é mais natural e não está tão degradado.”
“Mas se você considera um rio que está totalmente degradado e já tem poucas espécies nativas (com o ecossistema já simplificado), uma espécie introduzida tem muito mais chances de sobreviver e se estabelecer, porque o local está muito menos inóspito em relação a predadores e competidores”, analisa.
ORIGEM – Ainda não há consenso na comunidade científica sobre quando o Antropoceno teria começado e acerca da existência deste período. Alguns cientistas defendem que o marco seria a Revolução Industrial, no século XVIII. Outros, falam que a colonização das Américas no século XVI e o consequente extermínio de comunidades nativas atuantes na conservação ambiental destes territórios teriam desencadeado o Antropoceno.
Há, ainda, teorias de que o início seria no Neolítico, quando os humanos passaram a intervir mais na paisagem e biologia animal e vegetal a partir da agricultura e com a transição do nomadismo para sociedades fixas.
“Isso [o início do Antropoceno] ainda está em debate na literatura e a própria União Internacional de Ciências Geológicas, que define isso, ainda não tem critérios para dizer onde começa e termina esse período”, observa Murilo S. Dias. “Mas, mudanças abruptas encontradas no registro fóssil são um dos indicadores biostratigráficos que poderia marcar o início do Antropoceno.”
A partir da década de 1950, a ampliação do comércio global intensificou mudanças em vários processos ambientais, incluindo a introdução massiva de espécies exóticas de peixes em bacias de drenagens mundo afora. Por conta deste aumento, Murilo e os demais autores do estudo acreditam que, futuramente, será possível detectar restos de peixes exóticos nos registros fósseis em rios pelo mundo onde as espécies tenham sido introduzidas.
“Nossos resultados sugerem que as carpas europeias e asiáticas, o peixe mosquito, as tilápias e outras destas amplamente introduzidas vão compor os registros fósseis nas zonas do Antropoceno”, afirma o docente.
CONTRIBUIÇÃO – Desde 2010, Murilo S. Dias investiga mudanças na fauna dos peixes de água doce e a extinção de espécies causadas pelos humanos a partir de ações como desmatamento, poluição de rios, introdução de espécies exóticas e a construção de barragens. As pesquisas recentes com que tem colaborado nesta temática convergiram para a percepção da relação entre estes impactos e o Antropeceno.
Durante seu doutorado, cursado de 2012 a 2015 no Museu Nacional de História Natural em Paris, o professor participou da criação e atualização da base de dados global de peixes utilizada na pesquisa e também contribuiu nas análises estatísticas para a avaliação do efeito das espécies exóticas no remodelamento das Zonas Biogeográficas naturais.
A base de dados contém informações reunidas há mais de duas décadas. “Essa base de dados já está disponível. Nós a publicamos em 2017; ela é uma base de dados aberta que pode ser utilizada por qualquer pesquisador no mundo, mas continua sendo atualizada e ampliada ao longo do tempo”, diz o pesquisador.
Para ele, a colaboração internacional, além de resultar na produção de conhecimento inédito, é benéfica para ampliar a visibilidade da UnB e seus indicadores de pesquisa, já que o artigo tem sido amplamente visto. A colaboração também serve para projetá-lo em futuras parcerias com pesquisadores em outros lugares do mundo.
“Esse artigo não foi liderado por mim, mas foi feito em parceria, e essa forma de trabalhar, com um grupo legal que interage e se entende, é boa para todo mundo. Conseguimos produzir conhecimento e informação útil para todos, principalmente do ponto de vista prático e teórico”, celebra.