É madrugada no Brás, bairro na zona central de São Paulo (SP), a cidade mais populosa do Brasil e a maior economia urbana da América Latina. “Olha o cafezinho”, grita uma vendedora ambulante enquanto disputa espaço na rua ocupada por milhares de consumidores e comerciantes de roupas, sapatos, cosméticos, eletrônicos e os mais diversos produtos que se possa imaginar.
Na maior feira da América Latina, conhecida como Feirinha da Madrugada ou Feira do Brás, cerca de 100 mil pessoas circulam por dia, ou melhor por madrugada, já que seu funcionamento começa por volta de meia-noite e se estende até o nascer do sol.
Pátios de estacionamento nos arredores abrigam centenas de ônibus, oriundos de todo o Brasil e de fora do país, que transportam sacoleiros em busca da variedade e dos bons preços dos itens que abastecerão seus comércios locais. A pechincha encontrada ali é, em quase sua totalidade, resultado do comércio informal.
“Minha noção sobre a informalidade mudou quando visitei o Brás. Vi milhares de pessoas circulando – ambulantes, consumidores, ônibus que vinham da América Latina inteira, muitos estrangeiros – e percebi que parte das mercadorias que abastecem a feira chegam por meio de containers para os portos da cidade. Ali me dei conta de que se tratava não de um fenômeno local, mas global e altamente transnacionalizado”, conta Edvaldo Moita (FD/UnB), cuja visita ao Brás se deu no contexto de sua pesquisa de doutorado.
O trabalho foi desenvolvido em cotutela entre a Universidade de Brasília e a Universidade de Bielefeld, na Alemanha. Sua tese foi publicada originalmente em inglês: On the nature and impacts of noncompliance: with a study of informality and street vending in Brazil (Sobre a natureza e os impactos do descumprimento: um estudo da informalidade e da venda ambulante no Brasil, em tradução livre).
A quase inexistência de trabalhos acadêmicos sobre a temática em sua área foi uma oportunidade vislumbrada pelo pesquisador. “A regulação da informalidade no espaço urbano é tema que outras áreas já dominam há certo tempo, mas no Direito são praticamente inexistentes obras dedicadas a esse estudo. Eu vi ali uma lacuna a ser preenchida”, conta o pesquisador em menção a áreas como Antropologia Urbana, Sociologia e Arquitetura.
Moita acrescenta que, “ao mesmo tempo em que não havia trabalhos jurídicos sobre a informalidade, os trabalhos de outras áreas continham pouca informação jurídica”, o que trouxe contribuições não apenas para o Direito, pois “teve impacto no trabalho de juristas, arquitetos, sociólogos, economistas, etnógrafos”.
A PESQUISA – O interesse de Edvaldo Moita pelo estudo da informalidade surgiu na graduação e acompanhou sua trajetória profissional. “Eu já havia trabalhado em alguns casos que envolviam comércio ambulante. Sempre via uma distância enorme entre a prescrição legal e o que de fato acontece na relação dos vendedores ambulantes entre si, na regulação desse patrimônio que também é informal, na relação entre ambulantes e autoridades policiais, nas decisões tomadas pelo judiciário.”
No doutorado, seu primeiro passo foi pesquisar as decisões judiciais existentes sobre casos com vendedores ambulantes. “A grande maioria eram casos de natureza penal em que os vendedores ambulantes eram considerados autores, suspeitos ou testemunhas de crimes. Havia alguns casos de natureza administrativa, por exemplo, uma prefeitura tentava remover os ambulantes da ocupação do espaço público. Mas praticamente não havia casos em que o ambulante aparecesse como autor de pretensões jurídicas, ou seja, como um sujeito requerendo direitos”, detalha Moita.
O achado se alinhou aos conceitos de sobrecidadania e subcidadania, terminologia empregada pelo orientador da pesquisa na UnB, o professor da Faculdade de Direito (FD) Marcelo Neves. No primeiro caso, refere-se às pessoas que figuram nas decisões judiciais geralmente requerendo uma prestação positiva do Estado na viabilização de direitos. No segundo caso, são grupos populacionais vulneráveis que raramente aparecem no sistema jurídico solicitando uma prestação a que, em tese, teriam direito do ponto de vista estatal, mas frequentemente aparecem sendo demandados de suas responsabilidades pela estrutura coercitiva do Estado.
A pesquisa teórica envolveu, portanto, a conceituação geral da informalidade, o levantamento das normas jurídicas sobre o tema e uma revisão de literatura sobre comércio ambulante no mundo inteiro.
Com o trabalho de campo iniciado na Feira do Brás, a investigação ganhou novos contornos. “Decidi entrevistar vendedores, autoridades de fiscalização, procuradores do Estado que lidam com casos sobre ambulantes. Aí pude ter noção maior dos problemas que apareciam na regulação do espaço público e das vendas.”
Em seguida, Moita segmentou ainda mais a pesquisa, com um estudo específico da Feira da Sé em Fortaleza – a maior do estado do Ceará –, organizada ao redor da Catedral da Sé, ao lado da Prefeitura.
“Estamos falando de uma feira que é em alto grau irregular, envolve informalidade e diversas dimensões de ilegalidade, mas, ao mesmo tempo, convive com as instituições públicas do Estado”. Moita destaca que, “ao contrário do que a literatura descreve como sendo algo clandestino, escondido e por vezes subterrâneo”, sua pesquisa empírica mostrou que o comércio ilegal “muitas vezes acontece à luz do dia, ao lado de instituições públicas, na ocupação nas principais vias da cidade. Então é um fenômeno que conta com a convivência da população em geral”.
CONTRIBUIÇÃO – Além dos ganhos inéditos no ramo do Direito, uma das conclusões do trabalho é apresentar o funcionamento do Direito em condições de baixa eficácia de normas jurídicas, ou seja, quando as normas são pouco observadas socialmente, raramente aplicadas pela estrutura coercitiva do Estado, e de grande inconsistência nas decisões judiciais.
“A primeira consequência é a deflação do poder político, que é a perda da capacidade de normas legais e jurídicas veicularem decisões coletivamente vinculantes, ou seja, são muito baixas as chances de convergência do comportamento coletivo com o descrito na norma e também as chances de uso poder coercitivo do Estado para ajustar essa conduta”, detalha Moita, que atrela a investigação a conceitos oriundos da Sociologia.
Essa deflação do poder político resulta no que foi chamado pelo pesquisador de “racionalidade de barganha”. “No lugar de ter comandos e proibições impostas pelo poder do Estado, as normas jurídicas são transformadas em moedas de trocas entre agentes estatais e agentes privados”.
Ele traz como exemplo o caso da Feira da Sé, cujo funcionamento estava muito agudo em determinados horários e, para resolver o problema de ocupação ilegal do espaço público, indivíduos começam a negociar junto às autoridades públicas o funcionamento em um horário de menos impacto, como a madrugada.
“Aqui temos uma arena conflituosa porque o mercado ambulante é também um palco político, já que envolve boa parte do eleitorado e como as autoridades políticas vão lidar nesse jogo”, pondera Moita.
O pesquisador menciona o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) como um instrumento jurídico que exemplifica a racionalidade de barganha. “Ao negociar o horário de funcionamento de um espaço público cuja ocupação é proibida, temos a barganha acontecendo e se institucionalizando por meio de instrumentos jurídicos”, sintetiza.
A pesquisa mostra que o mecanismo de barganha fortalece o problema e aumenta o grau de descumprimento jurídico. “Antes, a proibição era ocupar o espaço público de forma geral. Com o termo, um novo padrão é estabelecido, mas nem todos irão seguir a nova norma. Então permanece o problema geral e cria-se um problema específico. E a quantidade de ambulantes tende a aumentar porque haverá ocupação de dia e de madrugada.”
Dessa forma, configura-se uma “espiral deflacionária do poder político”. “A produção de normas jurídicas para compensar o descumprimento de normas anteriores cria novas oportunidades de descumprimento, o que exige novas normas. É um ciclo que se perpetua.”
O diagnóstico implica, portanto, em conclusões que se distanciam das compreensões mais tradicionais tecidas na Teoria Geral do Direito, principalmente às de matrizes europeias e anglo-saxônicas. “Elas apresentam sempre uma descrição funcional do Direito, com a capacidade de harmonizar a sociedade, resolver conflitos e regular condutas coletivas. Eu apresento um funcionamento a partir de outra literatura, com olhar para as modernidades periféricas, em que há condições históricas específicas nas quais a aplicação do Direito pode, ao contrário, potencializar conflitos e diminuir a adesão coletiva às normas vinculantes.”
PREMIAÇÃO – A pesquisa desenvolvida por Moita acumula repercussão e reconhecimento internacionalmente. A mais recente distinção é o prêmio Adam Podgórecki, do Comitê de Pesquisa de Sociologia do Direito (RCSL, da sigla em inglês), parte da Associação Internacional de Sociologia (ISA, da sigla em inglês).
Um dos mais importantes na área, o prêmio reconhece o percurso acadêmico e os ganhos acrescentados à área da Sociologia do Direito. Moita é o primeiro brasileiro e também o primeiro latino-americano a receber a distinção.
“Fiquei surpreso quando soube do resultado. É um reconhecimento para minha pesquisa e trajetória, mas também uma conquista por chamar a atenção para a produção da América Latina”, destaca Moita sobre o título recebido este ano.
Em 2022, a pesquisa já havia sido premiada como melhor tese de doutorado na área de Teoria e Filosofia do Direito pela Academia Europeia de Teoria do Direito. Moita e o colega Ricardo Campos foram os primeiros brasileiros a receber o título. Em 2021, o trabalho foi premiado pela Associação Brasileira de Filosofia do Direito (Abrafi).
Sobre o reconhecimento dado ao trabalho, Moita destaca a importância do fomento e da garantia de condições adequadas para que pesquisadores desenvolvam suas pesquisas.
“Boa parte da minha pesquisa só foi possível porque a realizei na Alemanha. Lá tive muita infraestrutura e apoio. Passei em uma seleção da universidade em que fui contratado para realizar minha pesquisa, então tinha direito a salário, férias, previdência e todos os benefícios que outro trabalhador da instituição teria”, conta o docente sobre o período do estudo doutoral realizado presencialmente na Universidade de Bielefield, sob a orientação de Alfons Bora, e com a cotutela da UnB, sob a orientação de Marcelo Neves.
Ele acrescenta que o fomento do governo alemão contemplou sua participação em diversas conferências internacionais, nas quais pode apresentar seu trabalho, além de cobrir os gastos das vezes que retornou ao Brasil fazer as pesquisas de campo, como as visitas às feiras do Brás e da Sé.
Além disso, o pesquisador teve acesso a cursos de escrita acadêmica e de inglês jurídico. “Melhorei muito meu inglês e isso foi importante porque o trabalho foi escrito naquele idioma. É uma escrita muito precisa porque transita entre o Direito e outras áreas”, detalha Moita.
Junto às atividades de docência na Faculdade de Direito da UnB, Moita pretende seguir investigando a temática. “Um dos resultados que encontrei durante a tese diz respeito à fragmentação do Estado. Foi uma conclusão pequena, mas muito forte para mim. Pretendo seguir pesquisando o assunto”, comenta.