Estudo inédito da biodiversidade de peixes tenta explicar a formação da bacia com base em diferentes fatores, como o clima do presente e do passado 

Douglas Bastos/Agência Fapesp

 

Em uma extensão de sete milhões de quilômetros quadrados está a maior diversidade de peixes de água doce do planeta. A Bacia Amazônica é a maior do mundo, mas ainda não foi totalmente desvendada pela ciência. Uma pesquisa recente identificou que as mais de duas mil espécies de peixes da Amazônia têm uma distribuição peculiar, o que pode dar novos indícios sobre a formação da bacia.

 

Publicado na revista Science Advances – periódico internacional de alto impacto –, o estudo é resultado do projeto de colaboração internacional intitulado Amazon Fish, que contempla uma grande base de dados sobre peixes amazônicos. A plataforma é coordenada por diferentes instituições europeias, como o Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento (IRD), da França, e o ERANet-LAC, rede científica que integra países da União Europeia e da América Latina e Caribe.

 

A iniciativa reúne ainda cientistas de países onde se situa a Bacia Amazônica (Brasil, Peru, Colômbia, Equador, Venezuela, Guiana e Bolívia) e também da Bélgica. Participaram do artigo 21 pesquisadores de 17 instituições. O professor do Departamento de Ecologia do Instituto de Ciências Biológicas (IB) da UnB Murilo Sversut Dias foi o responsável pela análise do banco de dados, em colaboração com o pesquisador francês Thierry Oberdorff.

 

O trabalho teve início há três anos e, desde então, foram realizadas reuniões periódicas para discutir a integração de dados dos diferentes pesquisadores participantes. “Como cada instituição tinha um conjunto de informações de uma região onde trabalhava há mais tempo, o maior esforço foi reunir esses detalhes, organizar e consolidar uma base de dados única”, explica Dias.

 

O objetivo dos encontros era, entre outros, verificar questões sobre a ocorrência das espécies e das bacias de drenagem, e a forma de classificação da fauna, assim como compartilhar resultados preliminares do estudo. Segundo o docente, esta foi uma das primeiras investigações utilizando a base no âmbito do grupo de pesquisa.

 

“Embora seja de suma importância e muito diversa, a Bacia Amazônica ainda é um grande hiato do conhecimento, não só em termos de peixes, mas de outros seres vivos”, disse. O estudo inova ao trazer uma compreensão mais ampla sobre essa biodiversidade em grande escala.

 

BIOGEOGRAFIA – A pesquisa utilizou uma abordagem macroecológica e biogeográfica com o objetivo de identificar como a distribuição da riqueza de espécies e de endemismos foi determinada por fatores ambientais do presente e do passado ao logo dos últimos milhares de anos. “Está relacionado a como e onde esses animais surgiram nos diferentes rios da bacia e com que intensidade”, pontua.

 

“Queríamos entender quais espécies ocorrem em determinados rios ou bacias de drenagem, quantas espécies existem e o quão similar é a fauna de peixes entre as bacias. Isso tudo levando em conta o contexto histórico dos últimos dez, 20 milhões de anos na Amazônia; ou seja, o que aconteceu com essa fauna em função das mudanças na bacia", completa o pesquisador da UnB. 

Monocirrhus polyancanthus é uma das 2.257 espécies descritas da Bacia Amazônica, que concentra a maior diversidade de peixes de água doce do mundo. Foto: Douglas Bastos/Agência Fapesp

 

De acordo com o professor Dias, especialista em macroecologia, existem outros trabalhos prévios sobre a distribuição de peixes da Amazônia, mas esta foi a primeira vez que a fauna foi relacionada a diferentes fatores – como, por exemplo, o clima do presente e do passado – que podem ter influenciado a formação da fauna de peixes amazônicos. “Nesse sentido, o nosso estudo foi pioneiro, pois nós não só descrevemos e quantificamos as espécies, mas tentamos explicar como essa diversidade foi formada”, afirma.

 

A investigação de uma bacia hidrográfica permite conhecer um pouco do que aconteceu naquela área ao longo do tempo. No caso da Amazônia, é possível inferir como as mudanças no continente sul-americano determinaram a biodiversidade, que é própria daquela região tropical. Portanto, “entender a história desses organismos é entender sua origem evolutiva e como essa região megadiversa foi formada”, segundo o professor brasileiro. 

 

RESULTADOS INESPERADOS – Em geral, quando se trata de peixes de água doce, são encontradas mais espécies à medida que se aproxima da foz do rio, pois é nessa região onde teoricamente os animais conseguem passar com mais frequência, funcionando como um ponto de conexão da fauna aquática. Além disso, este é o local mais abundante e rico, com mais hábitats e alimentos disponíveis.

 

Dias assegura, no entanto, que o estudo na Amazônia mostrou justamente o contrário. Os dados indicam uma diversidade grande de espécies na porção oeste da bacia, na parte mais rio acima, distante da foz. Isto é o que os pesquisadores chamaram de gradiente inverso de diversidade.

 

Após analisar a variedade de espécies de peixes em 97 sub-bacias, os dados correlacionados com os fatores históricos e geográficos confirmam que a Bacia Amazônica tinha uma configuração diferente há alguns milhões de anos. “Os rios a oeste da bacia drenavam para o Norte, em direção ao Caribe, ou seja, as águas desaguavam onde hoje está a Venezuela e a Colômbia”, sinaliza.

 

À medida que os Andes foram soerguendo, a bacia de drenagem foi mudando de configuração e a água passou a drenar para o Oceano Atlântico. Mas os cientistas acreditam que as espécies não tiveram tempo de acompanhar essas mudanças nos rios, e não tiveram tempo para descer, migrar e se dispersar rio abaixo. Por isso, acredita-se que a mudança na configuração do rio não seja tão antiga quanto se imaginava (dois milhões de anos ou ainda mais recente).

Registros de ocorrência de peixes disponíveis no banco de dados para cada sub-bacia de drenagem. Arte: The Amazon Fish database/Science Advances

 

A pesquisa também revelou que as áreas mais estáveis climaticamente nos últimos 200 mil anos apresentam, além de maior riqueza e variedade, muito mais espécies de peixes endêmicas, que só ocorrem naquela região e em nenhum outro lugar do mundo. “As bacias que se mantiveram quentes e úmidas são aquelas com mais espécies; por outro lado, aquelas cujo clima se alterou mais ao longo do tempo contemplam um número de espécies endêmicas muito menos significativo", explica Dias. 

 

O endemismo foi mais notado justamente no entorno da bacia, nos escudos, tanto do Centro e Norte do Brasil, quanto das Guianas e na proximidade das cordilheiras. E essas, segundo Dias, “são regiões que também contêm muitos rios fragmentados por cachoeiras, um fator biogeográfico importante para a geração de espécies novas ao longo de milhares de anos de evolução”. Portanto, é mais um indicativo do efeito histórico na formação da fauna de peixes da Bacia Amazônica.

Professor da UnB, Murilo Dias foi um dos responsáveis pela análise do banco de dados. Foto: Luis Gustavo Prado/Secom UnB

 

PERSPECTIVAS – Com a consolidação da base de dados, outros estudos estão sendo desenvolvidos, especialmente no sentido de identificar as lacunas de pesquisa. Uma das aplicações práticas desse projeto foi a determinação de áreas na bacia que ainda precisam de novas amostragens de peixes.

 

Outra linha de investigação é a classificação das bacias de drenagem de acordo com a necessidade de conservação e o potencial de produção energética e/ou agrícola. Segundo Murilo Dias, é preciso conjugar esses cenários e determinar quais são as áreas estratégicas para o uso sustentável e a preservação da fauna, especialmente nos locais que registram grande número de espécies endêmicas.

 

Os pesquisadores estão preocupados, ainda, em fazer projeções de mudanças climáticas e analisar seus efeitos nos peixes, apontando quais espécies vão expandir ou reduzir sua área de distribuição, migrar para rio abaixo ou rio acima. Há também a expectativa de incluir dados filogenéticos, relacionando as características das espécies e suas adaptações a um contexto evolutivo.

 

A expectativa do projeto Amazon Fish é disponibilizar e tornar as informações sobre a biogeografia de peixes mais acessíveis, o grupo espera que, até 2020, a base de dados esteja disponível para fomentar novos estudos. E, embora existam no Brasil alguns centros amazônicos específicos, como o Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia, em Manaus, ou ainda o Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém, o docente reconhece que ainda é preciso um esforço maior para conhecer toda a diversidade que a região amazônica abriga.

 

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