Publicada na Nature Communications, pesquisa faz novas descobertas, indo de encontro à teoria antropogência vigente há décadas

Arquivo pessoal

Uma busca rápida na internet pela expressão 'Terras Pretas de Índio' e já fica claro que o entendimento comum sobre a formação dessas manchas de solo escuro e fértil, encontradas na Amazônia, é resultado da ação humana no período pré-colombiano. No entanto, estudo internacional que contou com a participação de professores da UnB demonstra que esses solos datam, na verdade, de período anterior à presença do homem no bioma. 

 

A new hypothesis for the origin of Amazonian Dark Earths é título do artigo publicado em janeiro e que já teve quase cinco mil de acessos na Nature Communications, revista científica internacional de alto impacto, voltada a todas as áreas das Ciências Naturais. O grande número de visualizações da publicação deve-se à proposição de uma nova hipótese para explicar a origem das Terras Pretas de Índio na região amazônica.

 

A descoberta pode colocar em xeque a teoria antropogênica, até então utilizada para explicar a alta fertilidade do solo em plena Floresta Amazônica. O que muitos não sabem é que a riqueza, a exuberância e a biodiversidade da maior florestal tropical do mundo escondem solos pobres em nutrientes. No entanto, algumas áreas apresentam um solo enigmaticamente fértil, conhecido como Terra Preta de Índio (TPI).

Amostras utilizadas na investigação são provenientes da Estação Experimental do Caldeirão, situada em Iranduba, no Amazonas. Imagem: Reprodução/Google Earth

 

Estima-se que existam milhares de manchas de TPI espalhadas principalmente pela Amazônia Central e Oriental, de tamanhos que variam de menos de um hectare a centenas de hectares. “Além da alta concentração de nutrientes de plantas e de carvão pirogênico [biocarvão], também são encontrados fragmentos e artefatos cerâmicos que a arqueologia identifica como sendo de populações silvícolas pré-colombianas”, explica Rodrigo Studart Corrêa, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais (PPGCA) da UnB e um dos autores do trabalho.

 

O interesse pelas TPI é antigo – na literatura acadêmica há referências que datam de mais de cem anos. Segundo Rodrigo Corrêa, as pesquisas intensificaram-se nas últimas décadas porque essas terras são consideradas um modelo de ocupação agrícola do trópico úmido. “Os estudos sobre o carvão pirogênico existente nelas fomentaram a criação de um mercado de biocarvão (biochar) em várias partes do mundo. Há trabalhos que encontraram urnas funerárias de sepultamentos humanos e vestígios de cultivo agrícola nessas manchas, todos datando de milhares de anos”, comenta o professor Corrêa.

Para professor Rodrigo Corrêa, a hipótese precisa ser testada em outras manchas de TPI. Foto: Arquivo pessoal

 

NOVIDADE – A hipótese proposta pelos cientistas no artigo é que as Terras Pretas de Índio originaram-se de partículas transportadas por rios, cuja sedimentação na área de estudo teria se iniciado há 7.600 anos. Corrêa enfatiza que as características da Amazônia e o nível do rio Solimões eram diferentes dos atualmente verificados. 

 

“A datação de carbono, que nos levou ao passado, demandou que interpretássemos os dados conforme a região era há milênios, quando populações humanas não habitavam a área onde se situa a TPI estudada”, explicita o docente.

 

A importância de desvendar a origem dessas terras está na compreensão do uso do carvão pirogênico em solos e do poder fertilizante de partículas transportadas por rios, assim como na interpretação da antiga ocupação humana da Amazônia. “Os resultados também contribuirão para o entendimento da ecologia amazônica e para a preservação desse bioma”, complementa.

 

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O pesquisador esclarece que o cenário sobre a origem fluvial da fertilidade adquirida começou a se materializar com a análise dos elementos químicos encontrados nas amostras de solo estudadas. Ele também afirma que a datação de carbono em 7.600 anos e sua comparação com dados arqueológicos da presença humana no local fortaleceram a crença apresentada na pesquisa.

 

“A incorporação de material orgânico ao solo não justifica as concentrações de alguns elementos encontrados na TPI. Além disso, alguns deles são indicativos da presença de minerais máficos [ricos em ferro e magnésio], cuja fonte provavelmente se encontra na Cordilheira dos Andes. A datação de estrôncio [metal alcalino-terroso] e neodímio [metal do grupo terra rara] nas amostras coletadas representou a peça que faltava nesse quebra-cabeça”, aponta Corrêa.

"A colaboração estrangeira possibilita novos olhares sobre o problema de pesquisa", considera o professor do IG Roberto Ventura. Ele é um dos envolvidos no estudo multidisciplinar. Foto: Arquivo pessoal

  

Professor do Instituto de Geologia (IG) da UnB, Roberto Ventura participou do trabalho na geração dos dados isotópicos no Laboratório de Geocronologia e Geoquímica Isotópica. Em sua visão, a investigação em curso não anula o componente arqueológico e antropológico das Terras Pretas de Índio: “Essas populações [pré-colombianas] conseguiram, de forma inteligente e estratégica, utilizar processos naturais em seu benefício, no caso pelo acúmulo de matéria orgânica e nutrientes via rio”.

 

LONGO PRAZO – Rodrigo Corrêa conta que o seu interesse pelas manchas de TPI data de 1990, quando leu o primeiro livro sobre o assunto. Anos depois, passou a ministrar aulas sobre a temática. “Lecionei Ciência do Solo na UnB entre 2003 e 2009, e essas terras representavam as exceções às regras ensinadas."

 

Em 2011, uma indagação de um acadêmico australiano sobre a origem antrópica desses solos motivou a ideia da pesquisa. Apenas oito meses depois, com o auxílio do pesquisador Lucas Silva – graduado e mestre pela UnB – teve início a coleta das amostras de solo na Amazônia. “Lucas, primeiro autor do artigo, é atualmente professor na Universidade de Oregon, nos Estados Unidos, mas continua a pesquisar ecossistemas brasileiros e a interagir com docentes e discentes da UnB”, conta Corrêa.

 

Fruto de um trabalho multi-institucional, a investigação contou com a participação de 14 pesquisadores de sete instituições do Brasil e exterior: Universidade de Brasília; Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa); Universidade de Oregon (EUA); Universidade de Nottingham (Reino Unido); Laboratório Nacional Lawrence, em Berkeley (EUA); Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais (IFMG).

Cerâmica pré-colombiana encontrada na Terra Preta de Índio em Caldeirão, no estado do Amazonas. Foto: Rodrigo Corrêa

 

Sobre os desafios do estudo, Rodrigo Corrêa cita a área remota onde se situam os solos estudados, a distância física entre as instituições envolvidas e a obtenção de verbas para desenvolver o projeto.

 

O professor Roberto Ventura frisa que o artigo é resultado de esforço multidisciplinar, que envolveu geólogos, engenheiros florestais, agrônomos e geógrafos. Além disso, o docente destaca a importância da contribuição internacional, pois “traz, para dentro dos dados, visões diferentes para apresentar novas informações em investigações que estão na interface do conhecimento”. 

 

PERSPECTIVAS – Caso a hipótese seja confirmada em estudos futuros, Rodrigo Corrêa acredita que será preciso rever as teorias sobre a construção da fertilidade de solo por meio da aplicação de carbono pirogênico e sobre os modelos de ocupação humana da Amazônia pré-colombiana.

 

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“Conforme indicado na publicação, nossa hipótese precisa ser testada em outras manchas de TPI. Estudos sobre a paisagem de ocorrência das machas e sobre a sua composição mineralógica são urgentemente demandados para se evoluir o atual estado de conhecimento desses solos”, detalha.

 

Outro grande desafio para a ciência é desvendar o motivo da presença de artefatos cerâmicos e de sepultamentos em manchas de solo fértil, presumivelmente usados para o cultivo de plantas por populações silvícolas pré-colombianas.

 

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