Estudo usou metodologia de cálculo que dispensa o uso de dados numéricos e reforça a importância da biodiversidade para a agricultura. UnB é pioneira no uso da técnica.

O biólogo Fernando Goulart aplicou técnica inovadora para avaliar impactos da agricultura intensiva – que envolve alta tecnologia, maquinário agrícola e o uso de agrotóxicos – e do manejo tradicional da terra praticado por populações do norte de Minas Gerais conhecidas como geraizeiros em espécies de aves do cerrado. O estudo, que faz parte da tese de doutorado do pesquisador, prova que a primeira forma de ocupação do solo é mais danosa para as aves do que as técnicas tradicionais. O resultado foi diferente para os três grupos de aves analisados na pesquisa: não-florestais, florestais especialistas e florestais generalistas.


O resultado – alcançado graças a um método de cálculo informatizado conhecido como modelo em raciocínio qualitativo, que não depende de números – mostrou que a agricultura intensiva causa a perda de aves não-florestais e florestais especialistas, enquanto que as florestais generalistas permaneceram estáveis. O manejo tradicional, por sua vez, leva ao declínio ou à manutenção dos grupos não-florestais e à manutenção dos grupos florestais generalistas e especialistas. “O que se conclui daí é que o manejo tradicional afeta de forma diferente as espécies e causa bem menos impacto”, diz.


Segundo Fernando, a vantagem do modelo qualitativo é a possibilidade de simular fenômenos muito difíceis de medir ou que dispõem de poucos dados disponíveis. Ele explica que, no lugar de números, os dados são inseridos no computador na forma de graus de intensidade, como baixo, médio e alto. O professor do Departamento de Ecologia Paulo Salles é co-orientador da tese junto com o professor Ricardo Machado, da Zoologia, e um dos maiores especialistas do país nesse tipo de análise. Segundo ele, a UnB é pioneira no Brasil na aplicação desses modelos em pesquisas. “Defendi uma tese de doutorado sobre o tema em 1997 e desde então já orientei muitas dissertações e teses na área”, relata. “O objetivo dos modelos qualitativos não é substituir os quantitativos, mas complementá-los”, esclarece o professor. “Com eles você consegue explicar razoavelmente o que está acontecendo e formular hipóteses a partir disso”.


LEVANTAMENTO - 
Para alimentar o modelo, construído a partir dosoftware Garp3, Fernando partiu de informações da literatura especializada sobre comportamentos das espécies como a dispersão das aves na paisagem, ou seja, se elas se concentram mais em determinadas áreas ou migram por regiões mais amplas. As características específicas dos três grupos de aves também pesaram na análise. Os não-florestais habitam apenas regiões de cerrado aberto, os florestais generalistas utilizam tanto os cerrados abertos como as matas para alimentação e reprodução e os florestais especialistas habitam as matas e atravessam o cerrado apenas em movimentações rápidas. “Além disso, consideramos como diferentes tipos de agricultura afetam o ecossistema por meio do tipo de recursos que elas fornecem à paisagem, como o cultivo de frutas que podem atrair aves frugívoras, por exemplo”.


A moral da história, segundo Fernando, é que a agricultura intensiva ainda impõe muitas perdas à biodiversidade. Para ele, valorizar a preservação da variedade de espécies é importante inclusive para garantir a produtividade das lavouras. “Na prática, o que vemos é uma via de mão dupla, da mesma forma que a agricultura causa impactos na biodiversidade, a manutenção de um ambiente diverso pode contribuir para o sucesso das lavouras”, afirma. Fernando encontrou evidências de que isso acontece em vários estudos nacionais e internacionais que consultou durante a pesquisa. O artigo Economic Importance of Bats in Agriculture of Bats, do biólogo americano Justin Boyles, por exemplo, calculou um prejuízo de US$ 3,7 bilhões por ano imposto à agricultura devido ao declínio da população de morcegos importantes para o processo de polinização. No Brasil, estudos realizados por Paulo de Marco e Flávia Coelho mostram que a ausência dos polinizadores pode levar à redução de 15% da produtividade de café.


POLÍTICAS -
 O orientador da tese, Ricardo Machado, que também coordena o Laboratório de Planejamento para Conservação, destaca que a biodiversidade pode ajudar a agricultura de várias maneiras. “Ela é fundamental porque garante serviços ambientais, que oferecem benefícios ao ser humano pelo simples fato das espécies existirem”, explica. “Um exemplo é a polinização, outro é o controle natural proporcionado por espécies que se alimentam de pragas”, relata Ricardo.


Para ele, o caminho para que agricultura e natureza façam as pazes depende de uma visão mais abrangente das políticas de proteção ambiental. O professor esclarece que a gestão com base na área ocupada pelos principais rios e seus afluentes – as chamadas bacias hidrográficas – seria a mais indicada. “É preciso trabalhar com o zoneamento ambiental de bacias hidrográficas inteiras em vez de cobrar de cada proprietário individualmente”, defende.


“O problema dessa política é que ela privilegia a preservação de pequenas áreas esparsadas. O ideal seriam áreas médias e próximas uma das outras, o que favoreceria a sobrevivência das espécies”. Segundo o professor, uma política que partisse dessa premissa permitiria definir áreas destinadas à preservação e outras ao cultivo. “Tomar cuidados na organização espacial é fundamental. A agricultura precisa de espaço, mas as espécies também”. Aliado a essa política o professor ressalta que a agricultura intensiva deveria se aliar a culturas de menos impacto, como as praticadas pelos geraizeiros.

 

GERAIS
Os geraizeiros são comunidades do norte de Minas Gerais que vivem da colheita de frutos nativos como o pequi, o panan ou o coquinho azedo, e de cultivos variados como milho, feijão, mandioca, cana-de-açúcar, frutas, verduras e outros produtos típicos do cerrado mineiro. Eles também praticam uma pecuária rústica, criando variedades tradicionais de gado em paisagens nativas. Grandes conhecedores de ervas medicinais, são chamados assim porque habitam os “gerais”, nome popular usado para designar a paisagem local, formada por planaltos, encostas e vales.