A presença maciça de estudantes durante todos os dias de um curso de capacitação em 2019 chamou a atenção da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAP-DF). Geralmente, mesmo em cursos muito concorridos e com grande número de inscritos, há o registro de ausências em algum momento. No caso em questão, as listas atestavam a presença de todos os alunos em 100% das aulas.
Desconfiados de que poderia se tratar de fraude, os responsáveis pelo setor na FAP-DF procuraram o Instituto de Ciências Exatas (IE) da Universidade de Brasília em busca de uma solução tecnológica que garantisse a autenticidade e a veracidade das informações.
Foi aí que um grupo de 14 docentes e estudantes se reuniu pelo projeto F2Dsys e construiu uma ferramenta capaz de auxiliar os gestores de pessoas com informações rápidas e apuradas com o uso de técnicas de biometria por reconhecimento facial e geolocalização.
O aplicativo Faciem (face, em latim) foi desenvolvido exclusivamente para celulares, e pode ser utilizado tanto em aparelhos de modelos mais simples como os mais modernos. Basta ter câmera e contar com sistema operacional Android, versão 10 ou superior, ou a partir do iOS 13, no caso de iPhones.
“Pelo computador seria passível de fraude, com o uso de um DNS fantasma. Este aplicativo tem acesso ao hardware do GPS do celular, não utiliza informações a partir da rede. Pegamos a informação mais confiável possível”, afirma o professor do Departamento de Ciência da Computação (CIC) da UnB Flávio Vidal.
Segundo ele, o Faciem utiliza técnicas de reconhecimento biométrico que garantem uma identidade única ao usuário e permitem saber se ele cumpre os requisitos esperados pelo gestor, como estar em dado local em determinada hora.
“Desenvolvemos essa ferramenta para poder permitir esse controle e garantir que as pessoas não colocaram terceiros para assinar por elas, com o autopreenchimento de formulários, por exemplo. Precisávamos de um mecanismo de confiabilidade. Trouxemos a tecnologia de reconhecimento facial, que já é utilizada para autorizar algumas operações. Está na sua mão, faça acesso”, instiga o docente.
O aplicativo foi testado por 504 estudantes da Universidade, que estavam espalhados pelo país durante a pandemia e assistiam às aulas de maneira remota. Mas o Faciem é programado para funcionar bem com até cinco mil acessos simultâneos, podendo ir além de acordo com a infraestrutura computacional utilizada. Para serem contabilizados nas disciplinas-teste, os alunos tinham necessariamente de estar em uma zona virtual criada pelos gestores do app.
“A ferramenta foi testada em várias turmas deste semestre. A FAP-DF também disponibilizou alguns funcionários para testes mais simples, mas de forma mais ampla os alunos que testaram as funcionalidades”, conta a também professora do CIC Aletéia de Araújo von Paumgartten.
“O projeto foi todo desenvolvido durante a pandemia, de maneira remota. Nos encontramos virtualmente uma vez por semana. E deu super certo, conseguimos trabalhar de forma muito tranquila e sincronizada”, avalia.
PARTICULARIDADES – Integrante da equipe, o estudante de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Informática (PPGI) Michel Rosa participou ativamente do desenvolvimento da infraestrutura do aplicativo Faciem.
Ele conta que houve a preocupação em utilizar um framework – estrutura que permite compartilhar trechos de código entre aplicações com funcionalidades semelhantes – para implementação de microsserviços, para que a ferramenta pudesse ter alto desempenho quando demandada pelo usuário.
Com processamento em batch ou lote, o app também é capaz de funcionar na frequência determinada pelo gestor, ou seja, em vez de registrar a presença de alguém em tempo real, ele pode fazer o reconhecimento facial e processar esta informação dentro do período desejado – a cada minuto, a cada meia hora, ou em intervalos diversos e maiores, a depender da necessidade e dos recursos computacionais disponíveis.
“O gestor consegue delimitar quanto tempo a ferramenta vai levar para realizar essa validação. Assim que o processamento é realizado, o app comunica o usuário que a presença foi computada e está ok. Se não funcionou, ele também informa. O sistema critica se estiver fora da localização ou do horário de registro da chamada”, ensina Michel.
Recém-formado em Engenharia Mecatrônica pela UnB, Christian Cruvinel França entrou no projeto de pesquisa já mais para o fim do curso e, entre as atividades, focou a parte de reconhecimento facial em dispositivos móveis.
Segundo ele, há quatro técnicas de reconhecimento facial no aplicativo, três delas mais antigas e outra, desenvolvida pelo Google Brain a partir de redes neurais (inteligência artificial), que é a principal do Faciem.
“Falamos muito em aprendizados de máquina, que são algoritmos que aprendem com exemplos. Temos acesso a esses modelos que foram treinados previamente com milhões de exemplos, então a técnica acaba se tornando extremamente robusta. É capaz de reconhecer muito bem o rosto de uma pessoa”, pontua.
No Faciem, o usuário cadastra-se no início do aplicativo e registra fotos de seu rosto em três posições: frontal, virado à esquerda e à direita. A partir destas imagens, o app quantifica o rosto da pessoa, ou seja, transforma-o em número. É este algarismo que indicará o grau de semelhança entre o rosto que fez o cadastro original no app e o que está tentando validar presença em um curso, por exemplo.
"Como quantificamos a primeira foto, fazemos o mesmo com a nova foto e, de uma forma simples, verificamos o quanto elas são iguais, o quão próximo esses números multidimensionais são. Se a diferença entre os números está bem baixa, temos grande confiança de que a pessoa que está realizando a chamada é a mesma que fez o login; se os números estão muito diferentes, o algoritmo informa que não há características no rosto dessa pessoa que lembram o rosto original cadastrado", detalha Christian.
A equipe da UnB fez questão de ajustar os parâmetros do app para que fotos borradas ou tremidas não interfiram na leitura do sistema.
“Mesmo assim a acurácia ainda é muito boa”, avalia o coordenador do projeto, Marcus Vinicius Lamar, que também é professor do Departamento de Ciência da Computação da Universidade.
FUNCIONAMENTO – Em iPhones e smartphones com sistema operacional Android, o aplicativo funciona da mesma forma. A pessoa faz login com usuário e senha, e recebe um QR code, que, ao ser lido, abrirá o campo em que o usuário posicionará o rosto para a foto do momento. Daí em diante, é feito o processamento que resultará na presença ou não no curso ou trabalho.
"Os QR codes são lidos a cada encontro ou sempre que necessário e realizamos captura de mais uma imagem frontal do usuário nesse dia. Além disso, pegamos alguns parâmetros em background, que são transparentes para o usuário, como a localização, a precisão do sensor GPS, se está em movimento, e até em que velocidade está. Fornecemos esses dados para o servidor e ele vai realizar todas as validações necessárias para dizer se o usuário estava presente, se estava no raio requerido e dar o resultado final desse reconhecimento: se o usuário é realmente quem diz ser, se está no lugar certo e se é uma presença válida, de acordo com os dias e horários determinados”, explica Kelvin Lima, também recém-graduado em Engenharia da Computação pela UnB.
Ele frisa que se o usuário não puder atender a um dos requisitos do curso, como o raio de localização, por exemplo, o gestor pode dar presença manualmente – e fica registrado no sistema que não houve o reconhecimento facial.
Se houver troca de celular ao longo do curso, o usuário também terá de atualizar suas fotos originais, pois cada aparelho capta imagens com uma qualidade específica. Caso contrário, não haverá similaridade entre a foto capturada pelo novo aparelho e a gravada originalmente pelo app.
OUTRAS APLICAÇÕES – Apesar de ter sido testada em contexto acadêmico ou de cursos de capacitação, a ferramenta desenvolvida pela UnB, FAP-DF e Fundação de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos (Finatec) permite alta personalização e pode ter uma grande variedade de usos.
Por exemplo, pode ajudar a organizar a distribuição de vacinas nas Unidades Básicas de Saúde (UBS). Nesse caso, o usuário previamente cadastrado na UBS de sua região poderia chegar ao local apenas no horário marcado e, com leitura do QR code e reconhecimento facial, já ser atendido com a vacina indicada.
Outra aplicação possível seria o controle de presidiários em regime semiaberto, que saem cedo para trabalhar e retornam ao presídio para dormir.
“É uma solução bem eficiente. Se não chegou ao local esperado no tempo esperado, o gestor já recebe um alerta e já manda ligarem para ele. Com essa ferramenta, é tempo real e custo baixíssimo”, ressalta o professor Flávio Vidal. “O custo de uma tornozeleira eletrônica, por exemplo, pode chegar a R$ 10 mil por unidade, e com R$ 5 mil é possível monitorar pelo menos dez presidiários em regime semiaberto.”
GANHA-GANHA – O projeto de pesquisa foi desenvolvido por quatro professores, além de um voluntário (egresso do mestrado na UnB) e outros nove estudantes de diferentes níveis e cursos. Todos os docentes e o doutorando conseguiram transformar o conhecimento adquirido em um artigo que será apresentado em junho na 17ª Conferência Ibérica de Sistemas e Tecnologias de Informação.
“Nós, professores universitários, gostamos de fazer pesquisa porque colocamos em prática aquilo que os alunos estudam em sala de aula. Além disso, os projetos de pesquisa proporcionam a troca de experiência e conhecimento. De modo geral, nas nossas universidades, ainda tem muito aquela percepção de que o professor está lá para dar o conteúdo e o aluno, para receber. No projeto de pesquisa, isso é diluído, ou seja, crescemos todos”, acredita a professora Aletéia de Araújo.
Sobre a ferramenta, ela lembra que foi toda construída em módulos para permitir personalizações. “É fundamental dar esse retorno à sociedade. Aplicamos tudo de melhor que sabemos dentro do nosso universo”, conclui a docente.
Assista matéria da UnBTV sobre a ferramenta: