Filme acompanhou discussões no Congresso Nacional sobre demarcação de terras, em abril de 2017. Produção concorre a prêmio em festival internacional

 

Imagens do curta-metragem mostram mobilização dos povos indígenas na Esplanada dos Ministérios contra ameaças aos seus direitos. Foto: Divulgação

 

Abril de 2017. Milhares de indígenas se reuniam nas proximidades do Teatro Nacional, em Brasília, onde foi montado o tradicional Acampamento Terra Livre, maior mobilização anual no país para articulação da luta pelos direitos desses grupos. O ato foi acompanhado por uma série de acontecimentos que culminaram em impacto para a causa dos povos originários. A poucos metros dali, no Congresso Nacional, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) investigava a atuação da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) na demarcação de terras indígenas e quilombolas.

 

Além do indiciamento de lideranças comunitárias, procuradores, antropólogos e servidores dos órgãos envolvidos no processo, o parecer da CPI sugeria a tramitação de um projeto de lei para regulamentar a demarcação das terras, considerando apenas as áreas já ocupadas até a data de promulgação da Constituição. O cenário conflituoso entre indígenas, que se manifestavam contrários às decisões tomadas pela maioria da comissão, e parlamentares favoráveis à penalização dos envolvidos nas demarcações, foi captado pelas lentes do cineasta e doutorando em Antropologia Social da UnB Tiago de Aragão, e se transformou em um documentário.

Tiago de Aragão, diretor do curta-metragem que participa de seletivas em festivais nacionais e internacionais. Foto: Arquivo pessoal

 

Entre parentes, título da obra em referência à união das etnias para além dos laços consanguíneos, está entre os selecionados na competitiva brasileira do 20º Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte (FestCurtasBH) – um dos principais no país voltados à categoria. O evento acontece de 10 a 19 de agosto na capital mineira e reúne produções brasileiras e do exterior. Entre Parentes concorre ao prêmio de melhor curta-metragem na avaliação do júri popular e do júri oficial. "Estamos muito felizes com a oportunidade de apresentar nosso filme em um festival de tal importância. O fato de ser em Belo Horizonte aumenta o apelo simbólico, por ser um dos estados expoentes do cinema nacional contemporâneo", diz Tiago de Aragão.

 

Este é o terceiro curta-metragem dirigido pelo pesquisador, que já teve suas obras concorrendo em outros festivais. “Mais do que falar da Funai e do Incra, essa CPI estava atacando os processos brasileiros de demarcação de terras e quem estava envolvido com ele”, expressa o diretor sobre seu projeto mais recente. O filme também teve o envolvimento de alunas egressas da UnB, com produção do grupo Sal, coprodução da Comova e apoio da Articulação Nacional de Povos Indígenas e do site Congresso em Foco.

 

Imagens sobre a resistência dos povos indígenas em contraposição às ofensivas no Congresso Nacional aos direitos desse grupo balizam a narrativa documental, que será lançada neste ano no circuito dos festivais de cinema. Em um mês de filmagens, a equipe de produção teve o desafio de observar toda a movimentação política no Congresso Nacional em torno do assunto, além da dinâmica das agendas das lideranças indígenas. Dentro e fora do plenário, o documentário acompanha dois militantes indígenas que presenciavam a sessão da CPI sem, no entanto, ter voz ativa durante o processo.

 

Com base nos pressupostos de um cinema observacional, o curta expõe ainda os discursos dos deputados da bancada ruralista e as tentativas de contraposição por representantes partidários defensores das pautas indígenas. Em um dos trechos do filme, a tensão entre os dois grupos se torna central para demonstrar como foram conduzidas as decisões da CPI. De um lado, parlamentares progressistas pedem tempo de fala para argumentar o descontentamento com o relatório produzido pelo relator da comissão. De outro, o presidente da CPI e aliados cerceiam os discursos daqueles que estavam desfavoráveis às suas propostas. “Os deputados não estavam afins de discutir as questões ou chamar e escutar uma liderança indígena sobre as acusações”, ressalta o doutorando e diretor do filme.

 

 

Paralelamente aos debates da comissão, nas proximidades da Esplanada, são as vozes das lideranças dos povos tradicionais que tomam corpo contra as tentativas de retrocesso. Insatisfeitos com as deliberações e com a falta de representatividade na cúpula do poder, eles marcham para frente do Congresso, levando caixas em formato de caixões, e se manifestam em favor de políticas adequadas para a demarcação de suas terras. Em poucos minutos, são dispersados pela polícia com bombas de gás lacrimogênio. “Houve uma tentativa de minar direitos, mas ao mesmo tempo uma resistência constante por parte dos indígenas, que lutam diariamente para que os direitos conquistados sejam efetivados”, afirma a diretora de produção do curta e mestre em Comunicação pela UnB, Camilla Shinoda.

 

A causa indígena, no entanto, abre precedentes para outras reflexões. Mais do que retratar os entraves políticos relacionados a esses povos, o filme se dedicou a demonstrar o funcionamento do Congresso e as barreiras à participação popular nos debates das comissões. Esses entraves se tornam visíveis sobretudo em uma das cenas do filme, em que uma militante indígena tenta ingressar em audiência pública e é barrada por seguranças, que afirmam se tratar de uma reunião restrita aos membros da comissão parlamentar. Na sequência, a câmera flagra a segurança reforçada implantada na porta de acesso ao Congresso. “É um espaço em que teoricamente as pessoas poderiam participar. No entanto, a partir de nossas pesquisas, consolidamos a impressão de que o acesso da população estava sendo travado de forma arbitrária”, alerta o diretor.

 

Tiago conta que a proposta inicial do projeto, concebido em 2013, era a de registrar os acontecimentos do corredor das Comissões Parlamentares, espaço onde se iniciam as decisões legislativas, posteriormente levadas à votação entre todos os deputados. “Pretendíamos fazer um filme para abordar diferentes questões que são discutidas ali, diferentes atores de segmentos populares e não populares, nessa tentativa de participação do processo político”, relata. Três anos mais tarde, com a aprovação de seu projeto no Fundo de Apoio à Cultura (FAC) e a disponibilização de recursos para a realização do filme, a mudança no cenário político trouxe à tona a necessidade de se aprofundar na questão, pelo viés da mobilização indígena.

 

EXPERIÊNCIA – Apesar de realizar recentemente suas primeiras incursões com a temática indígena no cinema e também na academia, Tiago considera a experiência de sua formação como antropólogo e o conhecimento adquirido no campo do cinema e da fotografia como importantes fatores na constituição de seu olhar como documentarista.

 

O doutorando iniciou sua trajetória no cinema, quando ainda estava na graduação. Em 2007, de passagem pelo Rio de Janeiro, Tiago de Aragão foi convidado, junto a dois colegas, a conceber uma metodologia de comunicação comunitária voltada a projetos em comunidades cariocas: “O desafio era pensar maneiras de produzir conteúdo com recursos limitados, nos obrigando a entender o que baseava os processos de produção audiovisual”.

 

Em 2009, já de volta a Brasília para ingressar no mestrado, acumulou participações em produções de cineastas locais e nacionais, como a professora Dácia Ibiapina, da Faculdade de Comunicação (FAC) e Gabriel Mascaro, diretor de Boi Neon (2015). As experiências o impulsionaram, mais tarde, a realizar seus primeiros trabalhos como diretor: Da Maior Importância (2011) e Curió (2014).

 

Foi a militância, no entanto, que abriu caminhos para que pudesse incorporar a questão indígena ao fazer cinematográfico e, em seguida, a suas pesquisas. Os bastidores de seu filme – aquilo que não pôde ser registrado, mas que lhe trouxe inquietudes – nortearão o desenvolvimento de seu projeto de doutorado, ainda em fase inicial. 

Cenas do filme registram discussão na CPI, com posicionamentos de deputados contrários e favoráveis ao indiciamento de pessoas envolvidas nas demarcações de terras. Foto: Divulgação

 

“O Congresso Nacional é um local onde a discussão regimental é muito forte. Para tudo existem caminhos estruturados e muito burocráticos. Só que as audiências públicas, CPIs e projetos de lei que são votados existem previamente, muitas vezes no que não é de dimensão pública”, afirma.

 

O modo como se dão as negociações anteriores às plenárias, especialmente por grupos interessados na manutenção dos direitos minoritários, é o ponto de partida da pesquisa de Tiago.

 

“Essa articulação anterior envolve o contato com pessoas que se conhecem, uma visita ao gabinete de um deputado ou um senador, uma passeata, uma nota. Tudo isso serve de base para os acontecimentos do Congresso Nacional”, explica o objeto de análise.

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