Uma pesquisa etnográfica sobre o impacto da epidemia do vírus zika no Brasil, entre 2016 e 2019, resultou no livro Micro: contribuições da antropologia, lançado em junho deste ano. Organizada pela professora Soraya Fleischer, do Departamento de Antropologia da UnB, e pela jornalista da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) Flávia Lima, a obra se propõe a contar o cotidiano de luta de mães para enfrentar a síndrome congênita do vírus zika (SCZ) que acometeu seus filhos. O intuito é também resgatar a história de uma epidemia que tem consequências importantes até hoje no Brasil.
A obra contou com a participação de estudantes de graduação e pós-graduação que acompanharam famílias acometidas pela doença em Recife, capital de Pernambuco. São 11 capítulos, divididos em temas, como mulheres, homens, crianças, doutores ou ainda medicamentos, que trazem como principal característica um diálogo horizontal, voltado à difundir informações para o público leigo, sem jargões acadêmicos. Financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o livro está disponível na versão on-line gratuitamente.
A SCZ causa o nascimento de crianças com microcefalia, ou seja, com cabeças diminutas ou com o desenvolvimento inadequado da massa encefálica, além de uma série de complicações neurais. “São histórias importantes e potentes, que revelam várias camadas e faces da epidemia, assim como suas consequências. Porque todas essas narrativas nos permitiram acessar os desdobramentos da epidemia”, expressa a mestra em Antropologia e professora Raquel Lustosa da Costa Alves. Ela ingressou na equipe no fim da graduação em Antropologia pela UnB e, na pesquisa, lançou o olhar sobre o cansaço e a sobrecarga materna. Recentemente, ela defendeu seu mestrado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
A equipe de pesquisadoras é formada exclusivamente por mulheres: são dez integrantes no total. De acordo Fleischer, essa característica contribuiu para o desenvolvimento da pesquisa, pois facilitou o acesso e a permanência do contato do grupo com as mães acompanhadas. “Há uma identidade entre gerações e sexo, pois são moças muito jovens que passaram por essa experiência na gravidez, criando crianças com deficiência e com a mesma idade de nossas estudantes de graduação e mestrado. O que facilita o contato e diálogo”, aponta a professora.
FEEDBACK – Com os recursos obtidos por meio do CNPq, a equipe custeou o acompanhamento semestral dessas famílias em Recife. Segundo Fleischer, em cada viagem, diferentes integrantes iam aos encontros das famílias acompanhadas. A docente ressalta que, em cada ocasião, a equipe levava às mães os resultados obtidos na pesquisa. Essa foi a principal condição evocada pelas progenitoras para participarem do estudo, pois elas perceberam que muitos pesquisadores, de diversas áreas da ciência, as procuravam e depois não retornavam para prestar contas das repercussões obtidas.
“Os pesquisadores pediam entrevistas, pediam sangue, pediam visitas nas casas, exames de crânio das crianças e elas, muito generosas, iam compartilhando tudo isso, mas nunca recebiam um retorno, um artigo científico, nenhum resultado ou notícia sobre a saúde de suas crianças”, descreve Soraya Fleischer.
Outro cuidado das pesquisadoras foi durante a construção da obra. Para elas, a sensibilidade das histórias deveria ser transmitida de maneira simples e direta, acessível a todos e, principalmente, às mães participantes do projeto. É uma obra sem dialetos científicos e com capítulos curtos, para facilitar a leitura. “A obra pode ser lida em qualquer lugar: seja num trajeto de ônibus, por exemplo, ou numa sala de espera ou num momento de descanso”, afirma Fleischer. “Os capítulos priorizam as histórias contadas, com as personagens, os figurinos e os cenários descritos por elas, ao invés de um texto mais distanciado que só analisa de longe”, completa.
DIVULGAÇÃO – Por meio da obra, a estudante do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS/UnB) Júlia Vilela Garcia pôde, por exemplo, aproximar-se da realidade vivenciada pelas colegas de curso ao longo da pesquisa e entender como as crianças com SCZ estão sendo inseridas no ambiente escolar. “O fato de poder ter acesso aos diários feitos pelas pesquisadoras foi fundamental para que eu tivesse maior contato com as histórias dessas pessoas, para que eu entendesse a fundo as situações pelas quais elas passam, e me sensibilizasse com os temas pelos quais elas próprias (as informantes) acreditavam ser os mais importantes a serem discutidos”, compartilha.
A obra foi enviada ainda para outros pesquisadores do vírus zika, profissionais da saúde que atendem os casos e terapeutas de reabilitação que convivem com as mães semanalmente. “Que os resultados desta epidemia cheguem a fonoaudiólogos, pediatras, cientistas de bancadas, pesquisadores da saúde pública, neurologistas, gestores, assistentes sociais”, espera Júlia.
EPIDEMIAS – O maior assunto global da atualidade tem sido o combate à covid-19. O novo coronavírus foi descoberto em dezembro de 2019, na província chinesa de Hubei, e ganhou proporções globais, caracterizando a atual pandemia. O presente cenário foi comparado às dificuldades enfrentadas pelo mundo durante a gripe espanhola.
Contudo, muito recentemente, o Brasil enfrentava uma epidemia de proporções importantes: o vírus zika. Os verões de 2015 e 2016 foram os momentos de maior contaminação no Brasil. Em quatro anos, a doença chegou a atingir quase 3,5 mil pessoas, segundo o Ministério da Saúde (MS).
A síndrome congênita associada à infecção pelo vírus zika (SCZ) é, muitas vezes, relacionada à dengue e à chikungunya, pois compartilham o mesmo agente transmissor, o mosquito Aedes aegypti. Contudo, diferentemente das outras duas doenças, o vírus zika é o causador da síndrome congênita que causa a malformação de bebês durante a gestação. Além disso, diferentemente das outras duas enfermidades, também é transmitido sexualmente.
A princípio, muitos acreditavam que o único modo de adquirir a doença seria pela picada do mosquito transmissor. Porém, constatou-se que o vírus zika pode ser transmitido de três maneiras: a chamada transmissão vetorial, do mosquito Aedes aegypti para o ser humano; a sexual, de um ser humano para o outro; e a vertical, de mãe para filho, durante a gravidez.
Segundo Fleischer, o nascimento de crianças com cabeças diminutas e redução da massa encefálica foi a primeira evidência da manifestação da doença. Contudo, com o avanço dos estudos, a comunidade científica identificou outras complicações associadas ao vírus, como dificuldades para a deglutição, problemas cardiorrespiratórios, complexidade para a locomoção e mobilidade, assim como outros distúrbios associados aos processos neurais.
CENÁRIOS – De acordo com Fleischer, o maior impacto da epidemia recai sobre as mulheres. A contaminação adquirida, muitas vezes, por meio de seus parceiros, afeta suas vidas desde o início da gestação, marcada por inúmeras incertezas. São mães que seguirão por uma jornada de cuidados, incluindo o provimento e custeio de tratamentos diários, seguida por um longo itinerário de consultas e exames para a reabilitação das crianças.
A principal motivação para o início das pesquisas foi o confronto com o cenário reprodutivo daquele momento. “Quando surge a epidemia do zika, o que mais nos motiva é entender a divisão sexual da consequência de uma epidemia. Nós fazemos uma antropologia feminista, uma ciência engajada com os ideais feministas para fazer com que os direitos sejam equalizados entre homens e mulheres”, explica.
SEMELHANÇAS – De acordo com a professora, além dos desafios citados, existe ainda uma ausência de políticas públicas que dificulta o enfrentamento à epidemia do vírus zika: problemas de saneamento básico e de habitação digna, e ausência de uma política de saúde reprodutiva, com ações de proteção, com métodos contraceptivos e informações durante a gravidez. Além disso, há ainda uma ausência de políticas de interrupção de gravidez, para os casos já diagnosticados de níveis avançados de anomalias ou deficiências. “Atualmente, não há nenhuma política de prevenção para essa epidemia. O que vemos são políticas de compensação, de indenização do Estado, pois ficou claro que é a ausência do Estado que intensifica as consequências do vírus zika”, esclarece a professora de Antropologia da UnB.
Segundo a docente, essa falta de política de prevenção é a maior semelhança entre a epidemia do vírus zika e a da covid-19. “No caso do novo coronavírus, foram milhares de mortes de brasileiro e a mesma ausência do Estado, se não pior. Não há política de prevenção, não tem política indenizatória, não há política de esclarecimento ou de informação”, aponta.
“No caso do vírus zika, a mulher é a principal protagonista dos cuidados e a principal vítima, junto com seu filho. Hoje, com a covid-19, vemos a mesma sobrecarga em cima das mulheres, tanto em termos de contágio, quanto em termos de cuidados daqueles que adoeceram. Seja no trabalho doméstico, triplicado com o confinamento, como também para os profissionais da saúde, que, em geral, na grande maioria é composta por mulheres”, detalha.
A principal diferença apontada pela docente entre as duas epidemias é em relação aos investimentos em educação e ciência. Segundo ela, recursos foram destinados para os estudos sobre a epidemia do vírus zika, o que não aconteceu com o novo coronavírus. “No atual governo, a gente tem visto uma retirada substancial de recursos da ciência e das universidades federais, que são as instituições que mais produzem ciência no Brasil, bem como das políticas de educação básica e superior”, pontua.
Além disso, Fleischer identifica na atual pandemia uma onda negacionista, com uma banalização das repercussões da covid-19, tanto do contágio ou números de mortes, quanto das sequelas presentes nos sobreviventes, diferente do que ocorreu no surto do vírus zika. “Nada disso é muito valorizado pela atual política governamental. Desta forma, a ciência tem sido progressivamente destituída de um local de autoridade, de um lugar de confiança”, consterna.
CONTINUÇÃO – A publicação da obra não implicou o fim do estudo sobre a relação das mulheres com a epidemia do vírus zika. O grupo está empenhado agora em estudar como o cenário contemporâneo incide sobre as famílias atingidas pelo vírus zika, para determinar um paralelo entre as duas epidemias. Pretendem ainda apontar as principais dificuldades enfrentadas pelas mães durante o isolamento social. Porém, atualmente, a equipe de pesquisadoras interrompeu suas atividades por conta da pandemia do SARS-Cov-2.
De acordo com Soraya Fleischer, quando respeitam o isolamento social, essas mães perdem as vagas e o acesso às terapias, por não serem consideradas emergenciais. “As crianças sem terapias sofrem muito, pois elas deixam de exercitar musculaturas, articulações, afetando toda sua mobilidade e sensibilidade motora, levando ao atrofiamento. E vão perdendo um monte de avanços obtidos”, ilustra.
“Então a covid-19 as coloca num retrocesso, com várias perdas, afetando a saúde dos filhos. Elas sofrem também um silenciamento, num contexto em que suas vozes são muito importantes nesta luta por direitos humanos”, expressa Fleischer. Estar em casa também dificulta a articulação semanal que há entre essas mães. Nesses espaços, elas se mobilizam politicamente para demandar direitos, pressionar ou denunciar ações do estado.
As dificuldades, segundo a docente, também envolvem o acesso a doações e medicamentos, pela falta de receita. “Assim as crianças voltam a ter, por exemplo, convulsões. Esses episódios recaem sobre o aprendizado delas, como também geram outras sequelas, além do risco de morte”, aponta. “Essa sensação fica mais latente para as famílias que vivenciam as desigualdade e que estão respirando o ar de outra epidemia”, complementa a mestra em Antropologia e professora Raquel Lustosa da Costa Alves.