Quase seis em cada dez domicílios brasileiros (59,4%) passaram por uma situação de insegurança alimentar durante a pandemia. É o que aponta estudo realizado em parceria com a Universidade de Brasília. Conduzida pelo Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia da Universidade Livre de Berlim (FU Berlin), a pesquisa procurou entender os efeitos da pandemia em relação à situação de segurança alimentar e consumo de alimentos no Brasil. Pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) também contribuíram com a iniciativa.
O estudo parte de inquietações sobre os efeitos da insegurança alimentar neste momento pandêmico, com base em alertas e denúncias de organismos internacionais, pesquisas nacionais e no exterior e informações de movimentos sociais brasileiros. Em junho de 2020, a Organização das Nações Unidas (ONU) divulgou estimativas de que, até o fim de 2020, cerca de 130 milhões de pessoas em todo o mundo poderiam estar em situação de insegurança alimentar, ou seja, sem acesso regular ou permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente para que suas necessidades sejam atendidas.
A UnB juntou-se à equipe responsável pela pesquisa para contribuir com a expertise nas áreas de opinião pública e comportamento político, especialidades do professor Lúcio Rennó, do Instituto de Ciência Política (Ipol). O docente colaborou na elaboração e supervisão do desenho de pesquisa e metodologia. Ele foi um dos responsáveis pela construção do questionário aplicado, que inovou ao abranger aspectos relacionados a segurança alimentar, comportamento político e valores sociais. A parceria também acontece com a análise dos dados e com publicações, trabalho que segue em andamento.
Uma amostra probabilística nacional foi considerada para a coleta de dados, tendo incluídas áreas urbanas e rurais. Foram entrevistados 2.004 cidadãos brasileiros maiores de 18 anos, entre agosto e dezembro de 2020. A pesquisa constatou que 125 milhões de brasileiros não tiveram alimentação adequada neste período. Os dados informados pela pesquisa medem o acesso da população à alimentação.
“Os entrevistados foram selecionados de forma aleatória, a partir de banco de dados de números telefônicos fixos e móveis, combinado com informações do cadastro de todos os telefones de acordo com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel)”, pontua Lúcio Rennó.
O professor do Ipol comenta que as entrevistas foram realizadas por meio da plataforma Raptor, que permite unir discagem automática em massa com toda a operação de um projeto de pesquisa, programação de filtros e pulos, gravação das entrevistas, auditoria em tempo real e controle de cotas. “Foram implantadas estratificações de gênero, idade, escolaridade e local de moradia na seleção dos entrevistados”, conta.
DADOS COLETADOS – O estudo avaliou a situação de insegurança alimentar enfrentada por domicílios brasileiros, ou seja, a existência de uma preocupação com a falta de alimentos e de dinheiro para adquiri-los e a necessidade das pessoas pularem refeições. No quesito da insegurança alimentar, a expressão mais grave se apresenta em uma experiência de fome.
Para entender o consumo alimentar da população, foram utilizados marcadores de alimentos saudáveis e não saudáveis do Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas Não Transmissíveis por Inquérito Telefônico (Vigitel) do Ministério da Saúde. Cereais, leguminosas, carnes, leite, hortaliças, frutas, ovos, queijos e tubérculos são marcados como alimentos saudáveis. Massas, panificados, industrializados e doces, como alimentos não saudáveis.
O objetivo da avaliação foi conseguir informações que pudessem mostrar se os entrevistados contavam com o consumo regular – mais de cinco vezes na semana – ou irregular – menos de cinco vezes na semana – dos alimentos dos dois grupos.
“Nós descobrimos que, mesmo antes da pandemia, já havia o consumo irregular de marcadores de alimentação saudável, sendo o consumo de tubérculos mais baixo. Ou seja, a insegurança alimentar pelo comprometimento da qualidade da alimentação já estava em curso no Brasil”, destaca Marco Antonio Teixeira, sociólogo e coordenador científico do Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça.
Ao analisar os três níveis de insegurança alimentar, percebeu-se que 31,7% dos domicílios estão em insegurança alimentar leve, 12,7% em moderada e 15% em grave. Esses resultados mostraram alta frequência de insegurança alimentar entre os entrevistados.
Com a pandemia, foi identificada queda no consumo regular de alimentos saudáveis, o que compromete a qualidade da alimentação. Em 44% dos domicílios houve redução no consumo de carnes, pouco mais de 40% diminuíram o consumo de frutas e queijos e 36,8%, de hortaliças e legumes. Os ovos foram os alimentos que sofreram a menor alteração no consumo: houve queda em 17,8% dos lares, enquanto que em 18,8% houve aumento. Esse crescimento pode indicar a substituição do consumo de carne.
“É importante observar que este percentual [de consumo de ovos] é muito mais elevado entre os domicílios em situação de insegurança alimentar, que tiveram uma redução de mais de 85% no consumo de alimentos saudáveis”, frisa Teixeira. Domicílios em insegurança alimentar são, na maioria, chefiados por pessoas de raça ou cor parda ou preta, de sexo feminino, com renda per capita inferior a R$ 1 mil e habitantes de áreas rurais, nas regiões Norte e Nordeste. Entre domicílios em segurança alimentar, a redução no consumo regular de alimentos variou de 7% a 15%.
CONSEQUÊNCIAS – Com esses dados, o estudo chega à conclusão de que a alimentação da população brasileira durante a pandemia tem sido irregular em quantidade e qualidade de alimentos saudáveis. A falta deles pode ter diversas implicações, como comprometer o crescimento e o desenvolvimento cognitivo de crianças, diminuir a imunidade e aumentar o risco de agravos como a obesidade.
“Considerando os vários níveis de insegurança alimentar, podemos afirmar que parte da população precisou pular algumas refeições, enquanto outra parte nem sequer teve alimentos suficientes para fazer refeições diárias”, enfatiza Marco Antonio Teixeira.
O professor Lúcio Rennó pontua que a comparação de forma estrita com dados coletados em pesquisas anteriores, que demonstram piora nos índices, não deve ser feita, uma vez que há diferenças significativas em amostras e questionários nos diferentes levantamentos “Contudo, a tendência observada reforça padrão já antecipado em pesquisas anteriores, dando indícios sobre a convergência dos resultados encontrados”, diz.
QUESTÕES SOCIAIS – Melissa de Araújo, nutricionista e pesquisadora da UFMG envolvida no trabalho, pontua que a insegurança alimentar e nutricional (IAN) é multidimensional, ou seja, é gerada por fatores diversos, o que pode ocasionar diferentes efeitos. Para a pesquisadora, as desigualdades alimentares – a insegurança alimentar é uma das dimensões – são resultado de um conjunto de fatores oriundos de questões políticas, sociais e econômicas.
“Sendo assim, não podemos ter uma compreensão superficial do fenômeno e é sensível afirmar que a IAN pode agravar problemas sociais. A ausência de vontade política para tratar o fenômeno poderia agravar problemas sociais, porque a raiz da causa é maior do que o resultado, nesse caso da insegurança alimentar e nutricional”, observa.