Educação inclusiva é tema de pesquisa de mestrado sobre estratégias de ensino e aprendizagem para alunos autistas

Mural criado por estudantes explora narrativas verbo-visuais em atividade sobre autismo. Foto: arquivo pessoal

 

As aventuras de Alice no País das Maravilhas é uma obra infantil clássica do século XIX, na qual a personagem principal aparece em diversas situações fantásticas e irreais, como se estivesse em um sonho. Algumas características de Alice são marcantes: conversa com seres inanimados, obsessão por alguns elementos e dificuldade de interação social. Por essa razão, diversos especialistas da área apontam que a história retrata, na verdade, o perfil de uma garota autista.

 

O autismo é um transtorno neurológico que, de acordo com a Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas com Autismo (Abraça), vem sendo estudado pela ciência há cerca de nove décadas. Embora ainda não seja um tema consolidado, tendo divergências entre os próprios estudiosos, cada vez mais pesquisas contemplam o tema.

 

A maioria dos estudos está relacionada à saúde, de forma geral, especialmente às áreas médica, fonoaudiológica e psicológica. Isso vem se ampliando gradualmente e a Educação também está direcionando o olhar a esse público. Alfabetização e educação física de crianças autistas estão entre as principais abordagens. Entre as inovações, uma pesquisa da UnB se destaca e é pioneira ao integrar o ensino de língua estrangeira a metáforas e autismo.

 

O doutorando do Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGL) Alex Leitão, quando ainda estava no mestrado, resolveu investigar como promover a educação inclusiva de estudantes autistas por meio de estratégias de ensino e de aprendizagem.

 

“Meus colegas de trabalho se diziam muito perdidos. De certa maneira sou bastante sensível a qualquer estudante que apresente algum transtorno por conta da minha história de vida. Sempre estive muito aberto às adaptações”, disse o professor de espanhol que atua há 20 anos na Secretaria de Educação do Distrito Federal, referindo-se ao irmão autista.

 

Intitulada Metáforas no país do espectro autista: um caso de ensino e aprendizagem de língua estrangeira, a dissertação de mestrado faz interlocução com a obra de Lewis Carroll e busca compreender como autistas processam “a linguagem mediante conceptualizações advindas de suas experiências corporificadas no mundo”, que é a base epistemológica do conhecimento metafórico. “Usamos a metáfora como instrumento da mente para fazer construções abstratas, utilizadas na educação e na ciência como método cognitivo”, explica o orientador do estudo, professor Enrique Huelva, que também é vice-reitor da Universidade.

 

Sobre a importância da pesquisa, o docente é categórico: “Entender como o autista lida com a metáfora é entender como ele lida com o cotidiano, em seu dia a dia, já que ela está presente em tudo, até mesmo na linguagem coloquial”. A pesquisa mostrou que é possível repensar as práticas pedagógicas e didáticas, e promover a inclusão.

Professor da Secretaria de Educação do DF, Alex, resolveu unir o desejo de pesquisa a uma motivação pessoal. Foto: Raquel Aviani/Secom UnB

 

NA SALA DE AULA – Para entender melhor como as metáforas emergem no contexto interacional de educação inclusiva com um estudante autista, foi realizado um estudo de caso. “Queríamos entender de forma mais profunda algumas características no processo de ensino e aprendizagem de língua estrangeira, por isso decidimos trabalhar com um aluno que já estava em nível mais intermediário da língua”, aponta Leitão.

 

Realizado em um dos 15 centros interescolares de línguas do DF, o estudo envolveu uma turma de jovens na faixa etária de 16 anos que tinha um estudante autista. A coleta de dados incluiu gravações de aula, narrativas escrita e oral do aluno e depoimentos semiestruturados com diferentes perfis, tais como o professor, as professoras da sala de recursos, os outros estudantes e a mãe do adolescente. “Isso foi importante para o cruzamento dos dados”, argumenta.

 

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sendo assinados termos de consentimento livre esclarecido. Embora não fosse o responsável pela turma, ele atuou como pesquisador participante e traçava, juntamente com o professor regente, algumas atividades. “Nós partimos do princípio de que a linguagem é corporificada. É a partir de experiências sensório-motoras e afetivo-cognitivas que nossa linguagem se constitui”, esclarece.

 

Alex Leitão pontua que linguagem, nesse caso, refere-se a uma perspectiva bem ampla, tanto verbal quanto não verbal. Gestos, expressões faciais, olhar do estudante também se articulam para a construção de sentidos. Um exemplo é o “bater no peito”, frequentemente utilizado pelo participante de pesquisa para expressar a intenção de tomar turno da cena interacional.

 

Ao observar o contexto, o pesquisador ainda explica que foi possível perceber como a competência discursivo-textual do estudante se comportava de forma diferente. “Com base na Teoria da Mente, isso se deve à previsibilidade da intenção do outro se manifestar de forma mais literal, tendo em vista que o processamento metafórico também se apresentava de forma diversa”, considera.

 

Desse modo, muitas vezes, o estudante não respondia a uma pergunta do professor porque simplesmente não entendia que se tratava de um questionamento. Para contornar isso, foram desenvolvidas algumas estratégias, como fazer uma marcação antes de se proferir uma pergunta. “Vou fazer uma pergunta: Por que você gostou do vídeo?”, exemplifica. Esse reenquadramento facilitava a interlocução entre professor e aluno.

 

DO CONCRETO AO ABSTRATO – Uma das principais contribuições da pesquisa é a comprovação de que trabalhar com o concreto é muito importante para a abstração, sobretudo para autistas. “Eles conseguem fazer essa relação das metáforas conceituais, mas utilizam outros caminhos. Em geral, o aluno elaborava a imagem literal e da literal voltava para o figurado, ou seja, desconstruía e depois reconstruía o que a metáfora significava em termos abstratos”, comenta o orientador Huelva.

 

Para isso, eram utilizados diferentes recursos visuais, como vídeos, imagens e revistas. “A gente sempre tinha um input muito mais concreto para poder chegar nessa conceituação do que é mais abstrato”, afirma o mestre em Linguística. Em uma aula sobre comidas, por exemplo, a proposta foi realizar uma feira. “Cada um levou uma fruta. Trabalhamos não só o vocabulário, mas também precificação e negociações. Foi muito significativo e ao fim, todos estavam dominando estruturas linguísticas, o léxico trabalhado e, principalmente, formas de interação contextualmente orientadas”, rememora Leitão.

Alex Leitão junto de uma das turmas do Centro Interescolar de Línguas onde atua como professor regente. Foto: arquivo pessoal

 

O doutorando conta ainda que, além disso, foram identificadas nessa experiência outras questões que influenciam o aprendizado do estudante autista, como o posicionamento da carteira do aprendiz em sala de aula. “Trata-se de acesso, pois o aluno precisa estar mais próximo do professor e também do restante da turma”.

 

O uso do computador em sala de aula também foi eficaz, já que a caligrafia era um dificultador. “Há a sala de recursos, mas a ideia não é segregar o estudante, mas possibilitar que ele faça as atividades em sala de aula junto ao restante da turma”, pontua.

 

Outra conclusão é que adaptações podem ser feitas para toda a turma sem nenhum prejuízo. “O participante de pesquisa precisava se sentar no chão e nós entendemos isso, e era um recurso utilizado com todos os alunos”, assegura. Para o pesquisador, os adolescentes são muitos dispostos a trabalhar e a fazer diferente.

 

Em relação à metodologia, a análise de conteúdo contribuiu para identificar o impacto das questões linguísticas na comunicação e no desenvolvimento da competência comunicativa do aluno autista. Para auxiliá-lo nas leituras, o professor de espanhol ainda contou com sugestões da docente do Instituto de Psicologia da UnB, Maria Izabel Tafuri.

 

AUTISMO – Embora o termo tenha surgido em 1908, o autismo só começou a ser mais estudado a partir da década de 1940. Refere-se a um espectro muito amplo, que inclui diferentes graus e características neurodiversas. Na visão do professor, a inclusão é benéfica para todos, pois contribui para a formação cidadã e para tornar os jovens mais empáticos às diferenças.

 

Essa também é a opinião de Gabriela da Costa Silva, mãe do aluno autista que participou do estudo. Ela ressalta que na formatura do curso de línguas seu filho foi o orador da turma. “Essa foi uma das conquistas. Ele é muito carismático”, elogia orgulhosa. Para ela, a grande angústia dos pais de uma criança autista é saber se o filho vai conseguir ser independente e se terá condições de viver com autonomia na ausência deles.

 

“Houve muitos avanços, especialmente do ponto de vista médico, fisiológico, psicológico e de tratamento. Para mim, a área que menos avançou foi a Educação", analisa Gabriela, no tocante ao cenário nacional. "Enquanto, em geral, temos um médico ou um psicólogo, a criança tem vários professores. Portanto, é preciso produzir conhecimento para quem está na ponta”, reflete.

 

Qualificar os professores seria uma forma de garantir a educação inclusiva, segundo a mãe. “Acredito que isso é papel da academia, que pode construir conhecimento interdisciplinar e formar novos educadores”, acrescenta.

 

Os primeiros sinais de seu filho apareceram ainda na primeira infância, mas o problema ficou mais evidente à medida que avançava na escola. “Ele teve um diagnóstico errado, disseram que era só mal-educado”, lembra.

 

Aos 5 anos, ele foi a um especialista e a partir daí Gabriela mudou seus próprios planos para garantir estrutura e estabilidade para o futuro de seu filho. Hoje ela fala com alegria dos avanços que teve: “Em algumas coisas, ele até se destaca em relação aos colegas”.

Os resultados da pesquisa de Alex Leitão foram apresentados à Secretaria de Estado de Educação, à escola e à própria turma. Foto: Raquel Aviani/Secom UnB

 

PERSPECTIVAS – Atualmente, no doutorado, Alex Leitão está desenvolvendo um estudo etnográfico mais amplo, envolvendo mais sujeitos no processo interacional. “Continuo trabalhando com metáforas, semiótica social e narrativas visuais no contexto de ensino e aprendizagem de línguas, no qual busco viabilizar a aprendizagem de todos os estudantes”, enfatiza.

 

Orientadora desta pesquisa, a professora Janaína Aquino Ferraz conta que a abordagem da multimodalidade dá oportunidade de utilizar outras comunicações além daquelas comumente celebradas na escola.

 

“Tendo em vista que uma das dificuldades do autismo é a interação social, a potencialidade do estudo está justamente em ofertar outra forma de expressão por meio de narrativas visuais”, defende.

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