Um novo estudo realizado por pesquisadores da Universidade de Brasília, da Universidade Federal do Tocantins (UFT), e da Universidade de Oxford, na Inglaterra, publicado no último dia 22 de setembro na revista científica Journal of Animal Ecology, mostra como três espécies de lagartos do Cerrado – uma das áreas mais ricas em biodiversidade do mundo – estão reagindo a variações de regimes de queima e do clima.
>> Confira o artigo Severe fire regimes decrease resilience of ectothermic populations
O Cerrado, bioma considerado “berço das águas” do Brasil, enfrenta um aumento crescente de incêndios (queimadas descontroladas) devido ao desmatamento e às secas prolongadas, resultantes da crise climática global. Os pesquisadores investigaram como a resiliência demográfica de lagartos varia com as taxas de sobrevivência, crescimento e reprodução. A resiliência demográfica se refere à capacidade das populações de resistir e se recuperar de distúrbios no ambiente, como incêndios ou mudanças no clima. O estudo considerou três componentes principais dessa resiliência:
1. Resistência: a habilidade de uma população de evitar a diminuição no número de indivíduos durante um distúrbio, como uma queimada.
2. Compensação: quando, após um distúrbio, a população consegue não apenas se manter, mas até aumentar de tamanho. Isso acontece quando as espécies se adaptam ou se ajustam de alguma forma.
3. Tempo de Recuperação: depois de passar por um distúrbio, as populações podem levar algum tempo para voltar ao que eram antes. A recuperação é o tempo que elas levam para estabilizar sua estrutura.
Esses três aspectos ajudam a medir quão bem uma população pode sobreviver e se ajustar às mudanças no ambiente, como as provocadas por queimadas e alterações climáticas.
DADOS CONSIDERADOS – Os pesquisadores analisaram 14 anos de dados de monitoramento mensal, usando uma abordagem sofisticada de modelagem para entender como o clima e os regimes de queima afetam as taxas vitais (como sobrevivência, crescimento e reprodução) de três espécies de lagartos do Cerrado: Copeoglossum nigropunctatum¹, Micrablepharus atticolus² e Tropidurus itambere³.
Apesar de terem estratégias de vida bem diferentes, estas espécies convivem nos mesmos ambientes, o que permitiu aos pesquisadores estudar como elas reagem aos regimes de queima e mudanças na vegetação causadas pelo fogo, dependendo de suas preferências por microclimas e habitats específicos. Isso torna cada espécie um exemplo único de como os animais podem se adaptar a distúrbios ambientais.
A Reserva Ecológica do IBGE (RECOR), em Brasília, área escolhida para o estudo, é um exemplo raro e extremamente valioso de um experimento natural de longo prazo. Iniciado em 1989, esse projeto foi planejado para estudar os impactos do fogo no Cerrado, a savana mais biodiversa e ameaçada do mundo. Antes disso, entre 1972 e 1990, a área foi completamente protegida contra incêndios, o que permitiu aos cientistas terem uma base sólida para entender como os ecossistemas respondem aos diferentes regimes de queima.
O experimento, que abrange 10 hectares de área dividida em parcelas, foi pioneiro ao submeter essas áreas a diferentes regimes de queima prescritos (queimadas controladas) que ocorrem em épocas específicas (início, meio ou final da estação seca) e com frequências variadas (a cada dois ou quatro anos). Desde então, os dados coletados nessas parcelas têm fornecido informações cruciais sobre como plantas e animais respondem ao fogo e às mudanças climáticas.
Esse experimento, idealizado há mais de três décadas, é uma rica fonte de descobertas para a ciência e é único, já que permite uma observação direta das consequências de diferentes regimes de queima em longo prazo, algo raro em estudos ecológicos. Graças à continuidade e ao rigor desse projeto, é possível compreender melhor hoje como as populações de espécies nativas do Cerrado se adaptam e resistem a distúrbios ambientais, ajudando a direcionar políticas de manejo mais eficientes e sustentáveis.
O estudo revelou que, embora os lagartos sejam mais resistentes em cenários de queima severa, isso diminui drasticamente a capacidade de compensação e recuperação dessas populações. A pesquisa sugere que graus intermediários de queima podem ser mais benéficos para a resiliência a longo prazo.
“Em um período de intensificação das crises ambientais, nossos resultados destacam a importância de promover a heterogeneidade no manejo das queimadas, evitando que regimes severos, como grandes incêndios, homogeneízem o ambiente e prejudiquem a capacidade de recuperação da fauna”, aponta Heitor Sousa, pesquisador do Departamento de Zoologia do Instituto de Ciências Biológicas (IB) da Universidade de Brasília, que liderou o estudo.
Além disso, a pesquisa levanta preocupações sobre as limitações reprodutivas de algumas espécies, especialmente aquelas com ciclos de vida mais longos e baixa taxa reprodutiva, que enfrentam maiores desafios para se adaptar a essas novas condições. Essas descobertas são de extrema relevância para a gestão ambiental e a formulação de políticas públicas, uma vez que os regimes de queima descontrolados não só ameaçam a biodiversidade, mas também a estabilidade ecológica de regiões chave como o Cerrado.
O artigo conclui que, embora as espécies estejam se adaptando, o ponto de inflexão de estabilidade para muitas delas já pode ter sido alcançado. Com isso, há uma janela de oportunidade para reverter parte dos danos, mas a ação precisa ser rápida e coordenada.
Em tempos de desafios ambientais sem precedentes, as evidências científicas apontam para a necessidade de um novo olhar sobre o manejo do fogo e o combate às mudanças climáticas no Brasil, como formas de garantir a sobrevivência da nossa biodiversidade e a preservação dos ecossistemas mais preciosos.
“Ao compreender melhor como essas populações reagem aos distúrbios ambientais, temos a chance de desenvolver estratégias mais eficazes para mitigar os efeitos das mudanças climáticas e dos incêndios”, avalia o pesquisador Guarino Colli, professor do Departamento de Zoologia do IB, coordenador da Rede Biota Cerrado e um dos autores do estudo.
¹ Copeoglossum nigropunctatum é um lagarto de tamanho médio, que pode crescer até cerca de 15 cm. As fêmeas dessa espécie são vivíparas, ou seja, dão à luz filhotes já formados, em vez de botarem ovos. Elas podem carregar até nove embriões por um período longo, entre 10 e 12 meses. Essa espécie é encontrada tanto no Cerrado quanto na Amazônia.
² Micrablepharus atticolus é um lagarto bem pequeno, com cerca de 5 cm de comprimento, e é exclusivo do Cerrado. Ele põe poucos ovos (1 a 2 por vez), mas é capaz de produzir várias ninhadas ao longo do ano.
³ Tropidurus itambere é um lagarto de tamanho intermediário, com cerca de 10 cm. Ele coloca várias ninhadas ao longo da estação reprodutiva, com 5 a 8 ovos por vez. Essa espécie é comum no Cerrado e se alimenta principalmente de pequenos invertebrados, como formigas.