Elas são frágeis e têm dificuldade em relatar as próprias dores, mas representam um contingente cada vez maior nas estatísticas de saúde. O número de crianças com dengue, no Brasil, vem crescendo desde 2004. Até aquele ano, o percentual de meninos e meninas de até 15 anos com a doença era considerado baixo pelas autoridades em saúde. Hoje, pacientes nessa faixa etária representam aproximadamente 25% dos casos confirmados.
A estimativa é do coordenador nacional do Programa de Controle da Dengue, Giovanini Coelho, do Ministério da Saúde. “Até 2004, praticamente não havia registro de crianças com dengue, os casos eram isolados”, explica. “A partir de 2007, observamos o aumento de pacientes nessa faixa etária. Desde então, o índice vem crescendo e hoje representa pelo menos 25% dos casos”.
Somente nas seis primeiras semanas de 2010, quando uma epidemia de dengue avançou pelo Brasil, foram contados 108.640 pacientes infectados em todo o país, mais que o dobro do registrado no mesmo período de 2009. Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Acre e Rondônia foram os estados mais afetados, com 71% dos casos desse ano. Os números incluem adultos e crianças.
O Ministério da Saúde não tem, ainda, estatística nacional consolidada de dengue em meninos e meninas nos últimos anos, mas a constatação de um percentual crescente de crianças em relação ao total de casos confirmados faz ecoar um alerta preocupante. Além de clinicamente mais vulneráveis que os adultos e de apresentarem características que dificultam o diagnóstico, as crianças com dengue apresentam outro agravante. Quando adquirem a chamada febre hemorrágica do dengue, uma das formas graves da doença, têm mais chances que os adultos de evoluírem para o quadro de choque, quase sempre fatal.
PESQUISA - Essa particularidade da doença em crianças é relatada em pesquisa da Universidade de Brasília (UnB), realizada a partir da observação de meninos e meninas com dengue, de zero a 15 anos, durante dois anos, na cidade de Manaus, no Amazonas.
Em Manaus, o índice de crianças com dengue, em relação ao total de casos registrados, quase que quadruplicou em uma década. Saltou de 15,7% em 1998 para 59,2% em 2008. Os números são do Sistema Nacional de Agravos de Notificação de Manaus (SINAN/DEPAM), da Secretaria Municipal de Saúde.
O fato de as crianças representarem mais da metade dos casos confirmados de dengue em Manaus foi um dos motivos que levou a pesquisadora da UnB, a amazonense Lúcia Alves da Rocha, a escolher a cidade para investigar o comportamento da doença nesta faixa etária. O trabalho foi apresentando como tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Medicina Tropical da UnB, sob a orientação do professor Pedro Tauil.
Lúcia avaliou 322 meninos e meninas atendidos nos três pronto-socorros da criança de Manaus e na Fundação de Medicina Tropical do Amazonas, nos anos de 2006 e 2007. A pesquisadora acompanhou os pacientes desde a suspeita da doença, passando pela confirmação do diagnóstico, até a alta do tratamento, nas situações em que isso ocorreu. Das crianças estudadas, cinco morreram.
VULNERABILIDADE - Dentre o total de crianças avaliadas pela pesquisadora, 41% apresentaram a febre hemorrágica do dengue e 3% evoluíram para o dengue com complicação, as duas formas graves da doença. Outros 54% desenvolveram a forma clássica da enfermidade e 2% apresentaram apenas a febre indiferenciada do dengue.
“É um índice altíssimo de casos graves”, afirma Lúcia Alves. No Distrito Federal, por exemplo, uma das unidades da federação mais atingidas pela epidemia atual, 107 crianças de zero a 9 anos contraíram dengue de janeiro a março de 2010, dentre os 2.717 casos registrados, mas não houve nenhum caso de febre hemorrágica do dengue entre meninos e meninas. Os números são da Secretaria de Saúde do DF.
Lúcia Alves acredita que o alto índice de crianças que tiveram a febre hemorrágica é conseqüência de uma segunda infecção pelo vírus, sem que a primeira tenha sido identificada. “Provavelmente essas crianças tiveram a forma mais leve da doença anteriormente, mas como os sintomas são parecidos com os de outras doenças, em especial a rubéola, o dengue não foi diagnosticado”, explica.
A hipótese de um primeiro diagnóstico errado é preocupante, porque o segundo contágio por dengue é sempre considerado mais perigoso. “Os estudos mostram que o contágio anterior de dengue é um fator de risco da febre hemorrágica do dengue”, explica a pesquisadora.
AGRESSIVIDADE DO VÍRUS - Ainda não se conhecem todos os fatores que estão associados ao dengue grave, mas há duas grandes teorias, segundo o chefe da Unidade de Pediatria do Hospital Regional da Asa Sul do Distrito Federal, Felipe Lacerda de Vasconcelos. “A primeira aponta para a agressividade do vírus contraído pelo paciente”, explica. Há quatro sorotipos do dengue, todos transmitidos pelo mosquito Aedes aegypti. A segunda teoria, a mais aceita, é o de uma resposta imune inadequada em um primeiro contágio. “Por algum motivo, no segundo contágio, o comportamento do sistema imunológico é inverso. Ao invés do paciente desenvolver uma forma mais branda da doença, ela vem mais grave”, explica.
O coordenador do Programa de Controle da Dengue atribui o aumento de casos em crianças a uma nova circulação do sorotipo DENV2 da doença, a partir de 2006. “Quando o sorotipo volta a circular, a tendência é que ataque crianças, pois estas ainda não estão imunes a ele, diferentemente dos adultos, que já o contraíram na primeira epidemia”, explica Giovanini Coelho.
Até 2006, no Brasil, vinham circulando os sorotipos DENV1 e DENV2. Ambos se disseminaram por todo o território nacional, durante a década de 90, depois de epidemia ocorrida no Rio de Janeiro, em 1986. Em 2000, foi identificado o sorotipo DENV3 no estado do Rio de Janeiro e, posteriormente, em Roraima, com rápida dispersão. Em 2004, 23 dos 27 estados já apresentavam esse sorotipo. A partir de 2006, o sorotipo DENV2 passou a circular novamente. “Este cenário levou a um aumento não só do número de casos em crianças, mas também das formas graves da doença, principalmente no Nordeste do país”, afirma o coordenador.
DOENÇA DA INFÂNCIA - Segundo dados do Ministério da Saúde, em 2008, as crianças representaram mais da metade das internações por dengue em alguns dos grandes centros urbanos. A tendência, afirma Giovanini Coelho, é que a dengue se torne no Brasil uma doença de infância, como ocorre no Sudeste Asiático. “Como quase toda a população adulta da região teve dengue, as mais vulneráveis à doença são as crianças, que estão nascendo agora e, portanto, não tem ainda imunidade ao vírus”, confirma o professor Pedro Tauil, do Programa de Pós-Graduação em Medicina Tropical da UnB. Segundo ele, a dengue é a causa principal de hospitalização e morte entre crianças no Sudeste Asiático.
O crescimento do número de casos em crianças levou o Ministério a adotar medidas de urgência para esta faixa etária, como o treinamento de pediatras para identificar os sintomas em crianças e a distribuição de um manual específico para o atendimento deste grupo. Segundo Giovanini Coelho, o material foi entregue a todos os médicos inscritos no Conselho Federal de Medicina, em todas as especialidades. Como o contágio de crianças é novo no Brasil, o Ministério trouxe ao país, em 2004, o pediatra cubano Eric Martinez, consultor da Organização Mundial de Saúde, para treinar dois médicos brasileiros em cada estado, para que estes ampliassem o treinamento aos demais agentes de saúde da rede pública.