“Meu irmão foi fazer fogueira e, quando foi pegar o papel, ele grudou no colchão que eu estava”, conta o garoto, identificado como C1 no estudo A relação criança queimada e cuidador e a vivência da queimadura, orientado pela professora Elizabeth Queiroz, do Instituto de Psicologia (IP). Os relatos foram coletados pela psicóloga Mariana Guedes Coelho, durante realização de pesquisa de mestrado no Programa de Pós-graduação em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde.
De acordo com a pesquisadora, o jovem C1 faz parte de uma realidade alarmante. Dados do Ministério da Saúde revelam que as queimaduras estão entre os acidentes domésticos mais recorrentes em crianças até 14 anos e são a quarta causa de morte infantil. A situação já é um problema de saúde pública e o impacto que a queimadura causa numa criança vai além da questão estética; acarreta danos emocionais e sociais, influenciando a relação de toda a família.
Um dos impactos é percebido no processo de reinserção social da criança vítima de queimadura, principalmente na aceitação da imagem corporal da criança queimada. A pesquisadora conta que “o cuidador sofre com a perda do filho antes perfeito e agora desfigurado”. Segundo Mariana, uma das mães entrevistadas confidenciou que gostaria que a filha tivesse a oportunidade de um dia reconstruir o rosto. “Para ela não faz diferença, mas para mim, eu vou te dizer a verdade, me incomoda a aparência dela”, assumiu.
Essa preocupação dos pais com a imagem do filho pôde ser notada no relato de uma das crianças, que passou a ter dificuldade de relacionamento com alguns familiares após o acidente. “Com meu pai, minha mãe e irmãs está tudo bem, mas meus primos não se acostumaram comigo”, contou a criança, que teve parte do rosto e peito queimados durante um churrasco.
O estudo confirmou também que os sentimentos de culpa, medo e a falta de informações sobre os cuidados necessários no tratamento, além da necessidade de lidar com a dor do filho, influenciam na relação entre o cuidador e a criança queimada. “Os sentimentos de culpa ocasionam mudanças na forma de os pais se relacionarem com as crianças, apresentando comportamentos como superproteção e medidas controladoras e restritivas”, diz a psicóloga.
Mariana Guedes constatou a necessidade de dar mais atenção aos cuidadores de pacientes queimados. “[...] o cuidador, além de compartilhar os momentos dolorosos [...] também se sente desamparado e vive o medo iminente da morte de seu filho, configurando assim uma desorganização psíquica que exige acompanhamento”, destaca. A pesquisadora espera que seu trabalho encoraje discussões entre pesquisadores, profissionais de saúde, além das equipes multiprofissionais de Unidades de Queimados, com o objetivo de integrar cuidadores e familiares "como pacientes, e não como meros acompanhantes”.
METODOLOGIA - A pesquisadora Mariana Guedes estudou o caso de nove crianças entre seis e 12 anos, vítimas de queimadura, a maioria por contato com fogo. Entrevistou as crianças e seus cuidadores durante atendimento ambulatorial na Unidade de Queimados do Hospital Regional da Asa Norte – HRAN, na fase de reabilitação. "A gente queria saber como elas já estavam lidando com as seqüelas da queimadura nesse momento de reinserção escolar e social", conta Mariana. A pesquisadora também analisou os prontuários dos pacientes queimados e avaliou a percepção das crianças sobre sua imagem corporal através de desenhos. Além disso, aplicou teste para avaliação dos sintomas de estresse pós-traumático (TEPT) em todos os participantes.
Para a pesquisadora, ainda é preciso investir em campanhas de prevenção contra queimadura. “A única coisa que poderia evitar os transtornos que causam a queimadura é a prevenção”, ressalta. Ela conta que infelizmente o maior número de crianças queimadas só sofreu o acidente porque estavam sozinhas, sem o acompanhamento direto de um adulto. “Podiam estar sob a supervisão da mãe, do pai, mas todos estavam fazendo alguma coisa e a criança estava só”, revela a psicóloga. “As condições às vezes levam a essa falta de cuidado com a criança, mas a questão da prevenção é fundamental, porque depois que queimou não tem jeito”, completa.