A ideia de que as praias cariocas são “um espaço milagrosamente igualitário e prazeroso”, como descreveu o antropólogo Roberto Da Matta em artigo publicado em 2006, é derrubada pela pesquisadora Fernanda Huguenin. Após dois anos entrevistando banhistas e prestadores de serviço e acompanhando o cotidiano da praia de Ipanema, na Zona Sul do Rio de Janeiro, ela concluiu que o acesso livre à praia não a torna, necessariamente, um espaço democrático. A pesquisa As praias de Ipanema: liminaridade e proxemia à beira-mar foi defendida em abril de 2011 pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília.
Fernanda explica que, como a praia é um espaço público, qualquer pessoa tem o direito de acesso. “Mas nem todos ocupam o local da mesma forma, já que para alguns, há dificuldade em chegar à praia e também porque as pessoas se dividem na areia de acordo com suas identificações”, afirma.
A pesquisadora mapeou quatro grupos que se organizam de formas muito próprias na praia que liga o Arpoador ao Canal Jardim de Alá: gays, maconheiros, farofeiros e a elite, como os próprios frequentadores denominam. A pesquisadora percebeu que o “mito da democracia” estava presente no próprio discurso dos frequentadores da praia, mas as entrevistas confirmaram o espírito “territorialista” de quem vai à Ipanema. “Essa territorialização pode estar vinculada a vários tipos de preconceito”, acredita Fernanda, que, na tese, chama os grupos de “tribos urbanas”.
Segundo ela, em muitas respostas, fica clara a percepção das pessoas de que a separação entre as tribos é um processo natural, como na entrevista com uma surfista carioca. “Se misturássemos todas as tribos num mesmo local sairia uma guerra. Se juntasse não daria certo”, afirma o rapaz. “Mas é democrática”, completa o entrevistado. “É democrática desde que certas regras de convívio sejam seguidas”, analisa Fernanda.
A pesquisadora percebeu que cada uma das tribos se sente mais segura entre os pares e ocupa territórios físicos definidos, uma divisão que, na opinião de Fernanda, reproduz a estrutura social. “Refletir sobre a praia carioca significa refletir sobre a própria diversidade do espaço urbano. As praias cariocas são uma espécie de microcosmo do Rio de Janeiro, exatamente porque atualizam os mesmos preconceitos e as mesmas segmentações nele encontrados, embora se possa projetar um pouco mais de abertura para a dissimulação e para o trânsito entre as diferenças e os diferentes”, explica.
Para entender melhor como os grupos se distribuíam nas praias cariocas, a pesquisadora foi morar na Cidade Maravilhosa. Além das entrevistas, debruçou-se sobre guias turísticos, revistas, redes sociais e sites de agências de turismo para ver como a imagem da praia e da democracia são construídas. Leu jornais publicados desde 1970 até a época da pesquisa para entender como os veículos retratavam a praia de Ipanema nas notícias e assistiu a filmes e documentários sobre o tema.
ARRASTÃO – A professora Lia Zanotta Machado, orientadora da pesquisa, explica que o estudo é uma interlocução com o antropólogo Roberto Da Matta, que afirma o aspecto democrático da praia no artigo Na praia, a reforma da sociedade. “A grande resposta que o estudo dá é que não é uma democracia harmoniosa, é um lugar de conflito”, afirma Lia. “Mostra o estilo da democracia carioca, que permite a diversidade do acesso, mas marca fronteiras hierárquicas, com disputa de territórios”.
Nas entrevistas, a pesquisadora percebeu que parte da elite formada pelos moradores do bairro temia pela democratização da praia. Na época, estava sendo inaugurada a estação de metrô General Osório, para deslocar moradores do entorno até Ipanema. “As pessoas não queriam que o metrô chegasse ao bairro. Não queriam que o bairro se popularizasse, que a praia se popularizasse”, diz. “Eu percebi que as pessoas tinham muito medo de que Ipanema se tornasse um bairro como Copacabana, que já teve muito prestígio e hoje é associado à mendicância”, explica Fernanda.
Parte do medo estava ligado à onda de arrastões ocorridos em 1992 em Ipanema – roubo coletivo em que um grupo de pessoas leva dinheiro, objetos pessoais e até as roupas de quem está na praia. “As pessoas temem que o arrastão volte a acontecer. O episódio deixou uma memória da popularização da praia, da popularização do transporte público”, conta a pesquisadora. O episódio ocorreu pouco depois que o Túnel Rebouças, que é a principal via de ligação do entorno à Zona Sul, foi inaugurado.
A orientadora da pesquisa acredita que a memória do arrastão ajuda a reforçar estigmas. “O momento do arrastão nos anos 90 marca o perigo e legitima o discurso de algumas elites que temem a chegada da multidão à praia”, afirma Lia Zanotta.
CLICHÊ – Logo que se mudou para a cidade do Rio de Janeiro, Fernanda foi morar em um bairro mais afastado da orla, chamado Santa Tereza. Durante os primeiros meses de pesquisa, pegava dois ônibus para chegar à praia de Ipanema. Depois, morou no pé do morro do Vidigal, e ia para a praia a pé. Assim, conviveu com a realidade de quem precisa se deslocar para ver o mar. “Essa imagem do carioca que está todo dia na praia, hedonista, desontraído, alegre, festivo, é uma imagem muito particular da Zona Sul”, conta. “Existem outras maneiras de estar na cidade. Outras maneiras de ser carioca”. Na maior parte do tempo, no entanto, ela viveu em Ipanema, a duas quadras da praia, mais perto do objeto da pesquisa dela.
Outro aspecto que chamou a atenção de Fernanda durante a pesquisa de campo é a maneira como os cariocas lidam com a construção do corpo. “É bem difícil encontrar alguém que se orgulhe de não estar no modelo do corpo malhado. Existe uma espécie de idolatria do corpo”. Para a pesquisadora, tanto a imagem do carioca que não trabalha quanto o estigma dos corpos sarados são ícones fabricados no RJ que acabam virando produtos nacionais. “Esse rio é o da Zona Sul. Não é o do Complexo do Alemão”.