O sonho da casa própria mobiliza milhões de brasileiros todos os anos, figurando como uma das principais demandas da população. Por trás desse recorrente e genuíno desejo há, porém, uma lógica governamental que opera a serviço da economia e do capital financeiro. 

Pesquisa da UnB revela que os programas habitacionais do Governo Federal beneficiam principalmente grandes empresas e bancos de investimentos. Ao analisar as políticas federais de habitação no Brasil entre 1964 e 2002, o arquiteto e urbanista Orlando Cariello concluiu, em sua tese de doutorado, que tanto as ações implementadas pelos governos militares quanto no período liberal de Fernando Henrique Cardoso não apenas foram incapazes de eliminar a penúria de habitação na sociedade brasileira como ampliaram o déficit quantitativo e qualitativo de moradias, realimentaram o crescimento das favelas e aumentaram a carência da população por esse direito fundamental. 


A contradição que sustenta a lógica governamental e provê o sistema habitacional configura um dos principais eixos de sua crítica."O dinheiro do trabalhador operado para a produção de moradias, seja pelo FGTS ou pelas cadernetas de poupança, não volta em seu benefício, mas contempla explicitamente os grandes banqueiros, empreiteiros, empresários, facilitando ainda mais a acumulação de capital”.


“Na virada do século XXI, após quase 70 anos de atuação estatal nesse campo, iniciada por Getúlio Vargas, e 40 anos desde a inserção da questão habitacional no centro das políticas de governo, o Censo indicava a necessidade de 6,5 milhões de moradias populares – 83% das quais para famílias com renda mensal de até três salários mínimos”, aponta Cariello. “Somam-se a isso carências de outra natureza, como alimentação, saúde, educação, entre outras, o que evidencia que demandas por habitação constituem tão somente um aspecto das condições gerais de vida da população trabalhadora”.


O estudo revela, entre outros dados, que durante os 22 anos em que existiu o Banco Nacional de Habitação (BNH), foram construídas 4,5 milhões de habitações, com investimento de R$ 62,7 bilhões. Isso para uma população que oscilou entre 80 e 135 milhões de pessoas. Já nos 16 anos pós-BNH, quando o Brasil passou a ter 170 milhões de habitantes, foram construídas apenas 4 milhões de casas, a um custo de R$ 78,9 bilhões. Ou seja, tanto o investimento governamental como o número de casas construídas diminui ao longo do tempo. “Colocar o financiamento da habitação – e não só a habitação popular, ou de interesse social — a cargo dos próprios trabalhadores representou a capitalização de suas economias e reservas, e também, a liberação dos recursos decorrentes da arrecadação de impostos para outros investimentos governamentais”, afirma Orlando.

No período chamado neoliberal, pós-BNH, o FGTS e as cadernetas de poupança continuaram como as principais fontes de financiamento da habitação, respondendo por 35% e 49% das aplicações, respectivamente (84% ao todo), e por 55% e 24% (79% em conjunto) da produção total. A partir do segundo ano de governo de Fernando Henrique Cardoso, verifica-se a incidência de novas fontes de financiamento, com aplicações de R$ 12,3 bilhões e produção de 848 mil habitações. “FHC estendeu ao conjunto da política habitacional os instrumentos, critérios e práticas que, desde os tempos do BNH, pautavam os programas cobertos pelo Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo, mais adaptados ao espírito da “livre iniciativa” e ao jogo do mercado que os projetos sustentados pelo FGTS”, avalia.


A partir da base teórica de Karl Marx e Friedrich Engels, especialmente a ideia de que a penúria da habitação para os trabalhadores tem origem na própria natureza do capitalismo e na miséria e na desigualdade gerados pela exploração do trabalho, Orlando mostra o processo de favelamento como um dos resultados da engrenagem capitalista que movimenta o sistema habitacional. Em seu estudo, afirma que as necessidades da acumulação do capital levam ao surgimento das grandes metrópoles e dos chamados problemas urbanos, como o crescimento anárquico e predatório das cidades, a poluição, o congestionamento.


“São as relações de produção e as demais relações sociais capitalistas que geram e regem as desigualdades na produção e a apropriação do espaço habitado”, diz Cariello. Para ele, “as más condições de habitação dos trabalhadores, as favelas, os cortiços, a existência dos sem-teto e moradores de rua, não podem ser interpretadas como desvios casuais ou temporários da sociedade, ou resultado da vontade de quem quer que seja. Ao contrário, constituem manifestações concretas da natureza exploradora e iníqua do capitalismo”.


FAVELAMENTO –
 Dados do Censo 2000 revelam que havia, à época, 3.905 favelas em todo o país, reunindo 1,65 milhão de domicílios, ou 4,5% dos 36,646 milhões de moradias do Brasil. Em 1980, eram 481 mil, o equivalente a 1,62% dos 29,656 milhões existentes. Para Cariello, o aumento do número de unidades faveladas em 244% em 20 anos — tempo em que o número total de domicílios crescia aproximadamente 24%, e a população brasileira pouco mais de 40%, passando de 120 milhões a 170 milhões de habitantes — “dá medida do ritmo em que progride a deterioração das condições de moradia nas camadas sociais populares”. Entre 1991 e 2000, quando o número total de domicílios do país cresceu 2,8% ao ano, a quantidade de domicílios em favelas aumentou na proporção de 4,18% anuais, agregando 509 mil unidades. Entre 1980 e 1991, a taxa de crescimento em favelas foi ainda maior, de 7,65% anuais, somando 661 mil novas moradias precárias.


Ao associar o quadro de escassez e degradação habitacional de 1964 a 2002 à consequente ineficácia da ação governamental, Orlando Cariello inicia sua hipótese com a experiência pioneira empreendida por Getúlio Vargas, “em medidas orientadas não para as necessidades de moradia das camadas populares, mas estrategicamente convertidas em fator de atração dos trabalhadores para as cidades e de controle social visando a um projeto de desenvolvimento baseado na indústria”.


Da experiência dos Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs), adotados no chamado “período populista” de  1930 a 1945 e da subseqüente Fundação da Casa Popular, em que 142 mil casas foram providas, o pesquisador conclui que a Política Nacional de Habitação (PNH), protagonizada pelo BNH, implementada no início da ditadura militar, mantém a lógica de dominação do Estado. “Desse projeto saíram os princípios ainda ativos da intervenção estatal: a difusão da casa própria por meio do crédito de longo prazo, alimentado por recursos captados dos próprios trabalhadores via FGTS e cadernetas de poupança”. Ao se valer dessa sistemática, a política habitacional obedece a uma lógica iminentemente capitalista – bancária e industrial -, que a distancia da maioria da população, em função da sua própria realidade econômica e social”.


Em uma avaliação crítica, o estudo afirma que esse modelo não atende à demanda já estabelecida nem ao seu crescimento ou àquele gerado pelo processo de urbanização acelerado. Conforme conclui o arquiteto, “essa condição é crônica na política habitacional iniciada em 1964, a qual nas três primeiras décadas de atuação teve apenas a terça parte de sua produção dirigida aos setores populares, apesar de financiadas por recursos do conjunto de assalariados e pequenos poupadores”.