Pesquisa denuncia afrontas ao tombamento da cidade. Turismo agressivo e falta de fiscalização seriam a causa.

Na cidade de Pirenópolis (GO), conhecida por seu padrão colonial, reinam as fachadas das casas em cor branca, os janelões coloridos, as grandes portas de madeira, as ruas de pedra. No município goiano a 137 quilômetros de Brasília, a sensação é de estar voltando no tempo, à época da descoberta do ouro pelos bandeirantes. E a expressão para descrever a Pirenópolis de hoje é mesmo essa, somente uma ?sensação de Antigüidade?, pois a cidade não é mais genuinamente original. Nem mesmo o tombamento, ocorrido em 1988, salvou-a dessas mudanças. Esse é o tema da dissertação de mestrado A Cidade de Pirenópolis e o Impacto do Tombamento, de autoria da arquiteta Miriam de Lourdes Almeida, defendida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da UnB, em novembro de 2006.


Miriam comparou a arquitetura da cidade utilizando acervos iconográficos (desenhos) e fotográficos do século XIX e XX e fotos recentes, tiradas por ela mesma em 2005 e 2006, das mesmas casas registradas nos acervos. Além disso, ela nasceu e cresceu na cidade, onde sua família mora há mais de quatro gerações e conhece o interior de muitas casas que hoje estão completamente modificadas.


FACHADISMO -
 O resultado da análise é frustrante: grande parte do perímetro tombado da cidade perdeu o que tinha de original. Pirenópolis passa pelo que os arquitetos chamam de fachadismo e espetacularização, ou seja, apenas uma impressão de preservação do estilo colonial, justamente para oferecer ao turista a sensação de estar em uma cidade histórica. Para quem não conhece, o fato de ter grandes janelas e portas em madeira pintada em cores fortes, já caracterizam o estilo colonial em bom estado de conservação. Mas as comparações por meio das fotos e visitas comprovaram que não só a arquitetura, mas também a questão urbana sofreu grandes alterações?, afirma Miriam.


A pesquisa mostrou mudanças no uso das casas e ruas, que na sua maioria passaram de uso residencial para comercial, com as consequentes interferências: nas fachadas do casario, na volumetria das edificações e na substituição do estilo construtivo por outros mais modernos. Originalmente, as casas eram construídas em taipa ou com adobe, tijolo feito de argila, misturado com palha ou capim seco ao sol e com as paredes caiadas de branco. Mesmo com o pé direito baixo, tinham ventilação pelo teto, através do forro, ou ?estuque?, que apresentava orifícios chamados ?ventilador?. Assim, as habitações sempre conservavam uma temperatura amena. Os pisos eram feitos de madeira, além das grandes janelas e portas quase sem ornamentos, devido a fragilidade da economia de então.


MUDANÇA SOCIAL –
 Desde o investimento maciço no turismo histórico, Pirenópolis vem mudando de cara. Após o tombamento, em 1988, a especulação imobiliária nos casarios tombados se intensificou e o valor dos imóveis antigos aumentou consideravelmente. Uma casa de quarto e sala não é alugada por menos de um salário mínimo, mesmo se localizada fora do perímetro tombado. Para os moradores nativos e proprietários dessas casas manter um imóvel tombado tornou-se caro demais.


Esse processo, chamado de gentrificador (transformações imobiliárias urbanas de caráter excludente), patrocinou o aumento dos bairros periféricos. Os moradores nativos tiveram de se deslocar para os subúrbios, favorecendo o aparecimento de loteamentos sem grande preocupação urbanística que proliferaram nos arredores do município e levaram a derrubada da mata nativa.


O processo refletiu no patrimônio imaterial e provocou um deslocamento e esvaziamento de alguns festejos tradicionais. Outra conseqüência também foi social e econômica. Se antes a região vivia basicamente da agricultura e da extração da ?Pedra-de-Pirenópolis?, hoje a sobrevivência vem dos reflexos do turismo. Embora tenha havido um incremento na economia, os moradores nativos antes proprietários, hoje têm uma qualidade de vida pior, pois a maioria é empregada dos comerciantes que vieram de fora.


"A cidade que possuía um encanto bucólico está perdendo suas características principais, e já oferece uma face semelhante às demais cidades contemporâneas, com problemas de trânsito, de infra-estrutura, e descaracterização visual", diz Miriam, que continua vivendo em Pirenópolis.


TOMBAMENTO – 
Legalmente a cidade está amparada pela Lei Municipal que define o roteiro histórico de Pirenópolis datada de 1976; o Código de Posturas (normas de edificação - 1977); pelo Plano de Ação Urbana para preservação do patrimônio histórico (1981) e finalmente pelo tombamento histórico em 1988, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). No entanto, a preservação da cidade deixa a desejar.


"A questão que fica é se com o tombamento é assim, imagina sem", critica Miriam. Para ela, a cidade não pode ser vista apenas pelo lado econômico, mas é preciso considerar o cidadão, parte integrante do processo histórico de conservação da memória pública. "A partir das várias tendências que cerceiam o patrimônio, é necessário definir uma vertente única que direcione a postura a ser tomada pela legislação, no que tange à conservação da memória do município e da região que o circunda dentro da dinâmica urbana sujeita a constantes transformações", conclui.