O Supremo Tribunal Federal (STF) encerrou o ano de 2019 com o menor acervo de processos das últimas duas décadas: 31.279 em tramitação, uma redução de 19,12% em relação ao ano anterior. A informação, divulgada no portal do STF, revela como o volume processual do órgão é significativo, representando grande demanda para os juristas.
Como estratégia para agilizar a tramitação e tornar a Justiça mais célere, foi desenvolvido software de inteligência artificial (IA), que otimiza a identificação de assuntos e a catalogação dos processos. Com isso, os profissionais de direito têm mais tempo e podem se dedicar a trabalhos que exigem expertise própria dos recursos humanos.
A ferramenta, que já está integrada ao parque digital do Supremo, tem tido avaliação positiva no cenário jurídico do país e também no exterior. Por ter protagonizado este projeto, intitulado Victor, a Universidade de Brasília tem se destacado como polo de pesquisas teóricas e aplicadas de IA para o direito.
"O que fazemos aqui tem virado referência, inclusive normativa, como na regulamentação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre ética e governança da inteligência artificial no Poder Judiciário (Resolução 332/2020 e Portaria 197/2019), em que o Conselho ouviu como representante externo somente a UnB, para formular sua norma nacional", informa o professor da Faculdade de Direito (FD) Fabiano Hartmann Peixoto, coordenador acadêmico do projeto.
É nesse contexto que foi elaborada a tese A inteligência artificial na repercussão geral: análise e proposições da vanguarda de inovação tecnológica no Poder Judiciário brasileiro, defendida por Fernanda de Carvalho Lage no Programa de Pós-Graduação em Direito da UnB. Orientado pelo professor Fabiano Peixoto, o trabalho é o primeiro de pós-graduação sobre inteligência artificial e direito na Universidade.
Para Fernanda Lage, atualmente professora substituta na FD, a implantação da IA tem crescido de forma acelerada nos últimos anos, sendo necessária validação científica dos benefícios e implicações geradas. "A importância da tese se dá pela necessidade de inserir o Brasil – em especial, a gestão do sistema de justiça – na vanguarda do desenvolvimento jurídico-tecnológico. Defende-se que o Estado realize a gestão estratégica do conhecimento por meio da inovação e da adaptação às mudanças", observa.
A modificação dos processos organizacionais dos tribunais pode influenciar essa transição, estabelecendo "uma política e um plano de ação relacionados com os sistemas de inovação e tecnologia do país", como aponta a autora da tese. O trabalho foi desenvolvido no âmbito do grupo de pesquisa Direito, Racionalidade e Inteligência Artificial (DRIA).
FUNCIONALIDADES – O software é utilizado para classificação de temas da chamada repercussão geral, que se refere ao julgamento de temas pelo STF em recursos extraordinários que apresentem questões relevantes sob o aspecto econômico, político, social ou jurídico e que ultrapassem os interesses subjetivos da causa.
"A classificação de temas de repercussão geral permite apoio e otimização de etapas no tratamento da repercussão geral, um filtro de natureza constitucional que agrupa e uniformiza decisões para um conjunto de processos associados, que podem chegar aos milhares. Assim, o Victor contribuiu com a redução do tempo médio de duração de um processo e ainda otimiza o desempenho de servidores da Secretaria do STF", salienta o orientador do estudo, Fabiano Peixoto.
Com início em 2018, o projeto Victor partiu de uma demanda do próprio Supremo, que identificou a possibilidade de aplicação de inteligência artificial e procurou a UnB. A iniciativa multidisciplinar envolve estudantes e docentes da Faculdade de Direito (FD) e das Engenharias da Faculdade UnB Gama (FGA). Ampliado em 2019, o projeto segue até o final do ano de 2020.
O nome é uma homenagem a Victor Nunes Leal (falecido), ministro do STF de 1960 a 1969, autor da obra Coronelismo, Enxada e Voto e principal responsável pela sistematização da jurisprudência do Supremo em súmula, o que facilitou a aplicação dos precedentes judiciais aos recursos.
De acordo com Peixoto, as áreas atuam metodologicamente combinadas e as equipes conseguiram um modelo muito interessante de integração e capacitação recíproca. "Os especialistas do direito têm uma função permanente quanto aos dados, tanto para a curadoria dos datasets de treinamento e testes quanto para validações e identificação de referenciais de treinamento", explica.
Eles têm a função de traduzir os aspectos da linguagem jurídica relevantes e permitem as variações e ajustes para a arquitetura de IA. Por outro lado, os recortes estatísticos e as alternativas de aplicação, bem como os formatos de integração, são conduzidos pela FGA.
METODOLOGIA PRÓPRIA – Um dos méritos da tese está no aspecto inovador, ao desenvolver metodologia própria para a classificação de textos de documentos jurídicos por meio de uma ferramenta inteligente, bem como nas proposições para ampliação da IA no exame da admissibilidade do recurso extraordinário.
Na perspectiva de Fabiano Peixoto, o trabalho é uma contribuição para futuras pesquisas no Brasil, uma vez que, em um cenário de inovação multidisciplinar, muito conhecimento não consegue ser apropriado por dificuldades de linguagem e racionalidade.
"Uma tese que envolve uma abordagem multidisciplinar é sempre mais complicada e desafiadora. A construção metodológica permite identificar os fatores críticos e encaminhar soluções para permitir o arranjo multidisciplinar, algo que ainda não havia sido feito. É um trabalho muito delicado, pela complexidade da linguagem e do raciocínio jurídico, expostos em formatos de textos e imagens com conteúdo relevantes", assegura Peixoto.
Ao questionar como se dá a inovação da gestão do sistema de Justiça com a introdução da inteligência artificial no exame da repercussão geral pelo STF, Fernanda Lage analisou os desafios e as contribuições efetivas da utilização de tecnologias de aprendizado de máquina (machine learning) e de aprendizado profundo de máquina (deep learning).
A primeira utiliza algoritmos para organizar dados, reconhecer padrões e, assim, permite que computadores aprendam com esses modelos e gerem insights inteligentes sem a necessidade de pré-programação. Já a deep learning utiliza algoritmos de alto nível para imitar a rede neural do cérebro humano.
FUTURO EM DECISÕES JUDICIAIS – Para o estudo, foi realizada pesquisa documental no banco de dados e nos arquivos do histórico e do regimento interno do STF, bem como análise do sistema desenvolvido na Corte Suprema. O desenvolvimento da inteligência artificial se apresenta como o futuro do processo, por se tratar de uma solução que amplia o acesso à jurisdição da Corte, sem redução de direitos ou aumento de gastos.
Há dois caminhos possíveis para a gestão do recurso extraordinário, segundo Lage: "aumentar ainda mais as barreiras normativas, por meio de novas súmulas, por exemplo, ou investir em novas tecnologias, como a inteligência artificial". Sobre as possíveis críticas no uso da IA nesse processo, a doutora em Direito explica que o papel do machine learning mostra-se, nesse caso, exclusivamente de apoio procedimental, sem carga decisória.
"O Victor é um mecanismo de apoio à decisão judicial e o caminho para maior eficiência administrativa e otimização da capacidade jurídica de julgar o recurso extraordinário. Ele não é nem inicial (por se tratar de um exame em sede de recurso extraordinário), nem definitivo (uma vez que a máquina é apenas um apoio à decisão do ministro), permanecendo a cadeia decisória inalterada", argumenta a autora da tese.
No âmbito do projeto Victor, estão sendo desenvolvidas atualmente outras aplicações, como o Mandamus para o Tribunal de Justiça de Roraima, com potencial para outros tribunais. Da mesma forma, a IA aplicada ao direito está permitindo a estruturação de projetos com outras instituições, como escritórios de advocacia, bancos e procuradorias.