O uso de substâncias psicoativas pelo homem é milenar, mas foi a partir da segunda metade do Século XIX que a prática ganhou novo significado, com mudanças nos discursos e práticas relacionados tanto às substâncias quanto aos seus consumidores. Esta é uma das bases da tese de doutorado Entre o mel e o fel: drogas, modernidade e redução de danos, defendida na Universidade de Brasília pela pesquisadora Juliana Rochet.
Segundo ela, é a partir da modernidade que o consumo de substâncias psicoativas ganha um sentido diferente, remetendo não mais a uma função meramente alimentar, curativa ou ritualística, mas a um sentido de experiência individual, ligada à busca do prazer. “Nas sociedades modernas, o indivíduo passa a exercer sua liberdade e, tomando a si mesmo como objeto de construção permanente, adquire o poder de extrair das drogas o que deseja, expondo-se a um efeito paradoxal de vida e de morte, de criação e de alienação”, observa Juliana.
Em seu estudo, a pesquisadora demonstra a existência de um “campo das drogas”. Um espaço de interação e disputas onde existem diversos modelos interpretativos dos fenômenos de produção, comercialização e consumo. Esses modelos determinam as formas de abordagem da questão, seja por meio de discursos, seja na elaboração de políticas públicas para seu enfrentamento.
“As drogas transcendem, e muito, sua materialidade. Elas são, também, uma construção social. Por isso, busquei entender não apenas o aspecto histórico, mas a dimensão simbólica da questão”, conta Juliana. “Na tese, explorei como se formou um arquivo de falas e textos, um estoque de verdades e uma visibilidade que direcionam interpretações e intervenções em relação à produção, comercialização e consumo das drogas”, completa. Segundo o estudo, a "questão das drogas" é filha da modernidade, uma filha rebelde que expõe as contradições da era em que vivemos.
REDUÇÃO DE DANOS – No estudo, Juliana Rochet mostra que essas interações entre atores e instituições quanto à abordagem da questão das drogas determinam políticas públicas como as de redução de danos (RD). Segundo ela, o debate sobre essas políticas no Brasil é marcado pelo discurso moral de marginalização e exclusão do usuário.
Para ela, o surgimento e implementação das ações de RD colocam em evidência a necessidade de refletir e ampliar as discussões sobre outros modelos interpretativos e de intervenção para a questão do uso e abuso de álcool e outras drogas, que não aqueles centrados no proibicionismo - que acabam por desconsiderar os diferentes padrões de consumo e os distintos graus de risco a que estão expostos os usuários de drogas.
“A pesquisa levanta uma discussão que, do meu ponto de vista, sempre faltou nas políticas públicas, que é uma discussão mais ética, filosófica, humana – e não apenas médica”, avalia a professora Denise Bomtempo, do departamento de Serviço Social, que orientou o trabalho.
Segundo definição do Ministério da Saúde, a redução de danos desenvolve-se por meio de ações dirigidas a usuários ou a dependentes de álcool ou outras drogas que não querem ou não conseguem interromper o uso dessas substâncias. O objetivo é reduzir os riscos associados sem, necessariamente, intervir na oferta ou no consumo.