Recurso utilizado historicamente por pesquisadores ajuda a destacar certos aspectos do objeto retratado e a divulgar estudos para o público leigo

Anastácia Vaz/Secom UnB

 

É desenho, mas não é considerado arte, pura e simples. É ciência, mas não vem exatamente de um laboratório. Assim é a ilustração científica, área multidisciplinar que abrange as ciências e as artes plásticas, com a finalidade de auxiliar pesquisadores a comunicarem ideias e descobertas por meio de desenhos detalhados. 

 

Muito usada para retratar animais, vegetais, artefatos arqueológicos, anatômicos, geológicos, geográficos, entre outros, tem o rigor no olhar e nos traços como a grande exigência do ilustrador científico, o qual deve ser capaz de ressaltar nas imagens produzidas determinados aspectos do modelo desenhado.  

 

“Ao contrário da arte, que nunca está ‘errada’, uma ilustração pode estar ultrapassada por retratar o conhecimento científico de determinado período. Com a evolução do conhecimento científico, uma nova ilustração se faz necessária para mostrar os conhecimentos adquiridos sobre aquele modelo específico”, ensina o docente do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Brasília Marcos Ferraz, fundador do Núcleo de Ilustração Científica (NicBio) da UnB. 

 

Ele conta que, nos anos 1960 e 1970, costumava-se representar dinossauros arrastando enormes caudas pelo chão, e hoje se sabe que eles tinham outra postura e que muitos tinham suas caudas para o alto.  

 

“Então, por mais bonita que seja uma ilustração daquele período, ela está errada e não deveria mais ser utilizada por transmitir um conceito hoje ultrapassado”, explica. “Ao passo que ninguém pensaria em retirar do Louvre a Grande Odalisca, de Ingres, por conter ‘erros anatômicos’”, opina o professor do NicBio, ao lembrar que a modelo, na obra do pintor neoclássico Jean-Auguste-Dominique Ingres, deveria ter três vértebras a mais para adotar a pose representada pelo artista.  

 

Segundo Ferraz, a decisão de Ingres foi de senso estético, e não científico, e por isso não diminui em nada seu valor para a arte. Já no caso da ilustração científica, ela tem sido usada como meio de comunicação científica há séculos e, muitas vezes, consegue ser mais bem entendida do que palavras escritas e até fotografias.

Professor Marcos Ferraz, do IB, ensina: o rigor no olhar é uma das exigências para um bom ilustrador científico. Foto: Raquel Aviani/Secom UnB

 

"O conceito transmitido por uma imagem, principalmente com o rigor de uma ilustração científica, é mais rapidamente captado e com menos chance de perda de significado ou dubiedade. Assume-se que o ilustrador tenha um rigoroso olhar ao representar seu modelo. Esta é a razão por que ela ainda persiste, mesmo com todo o avanço tecnológico quanto a produção de imagens", avalia Ferraz. 

 

PIONEIRISMO – A Universidade de Brasília conta, há mais de 20 anos, com o Núcleo de Ilustração Científica (NicBio), ligado ao Instituto de Ciências Biológicas. Entre as instituições federais de ensino superior, foi pioneira na iniciativa em 1999, quando Marcos Ferraz instituiu o espaço. 

 

“Eu achava e ainda acho que o biólogo deve saber desenhar, representar seu pensamento de forma também gráfica. Em 1997, criei a primeira disciplina de ilustração científica. Em 1999, criei o Núcleo de Ilustração Científica do IB, e de lá para cá, mais cinco disciplinas foram criadas para a graduação e uma para a pós-graduação”, relembra o docente.  

 

“Vale dizer que fomos pioneiros nesta iniciativa, que foi seguida por outras instituições, ainda que algumas tenham estruturas organizacionais diferentes do nosso Núcleo”, pontua. 

 

As diversas disciplinas de ilustração alternam-se pelos semestres, mas a básica, que enfoca o grafite e o nanquim, sempre é ofertada. E desde o início houve grande interesse por parte dos estudantes, a ponto de ser necessário sempre fazer uma pequena seleção, pois não há condições de atender a todos de uma só vez.  

Catarina Wilhelm cursa a segunda graduação na UnB e volta a ter vínculo com o Núcleo de Ilustração Científica por meio do Programa de Iniciação Científica: "bastante empolgada". Foto: Anastácia Vaz/Secom UnB

 

“Antes de entrar na UnB conheci uma pessoa em um atelier que fazia ilustração botânica e foi aluna do professor Marcos. Fiquei bastante empolgada com a possibilidade de estudar ilustração científica na Universidade, mas demorou um pouco para ter coragem de participar da seleção”, confessa Catarina Wilhelms, que cursa Geologia como segunda graduação atualmente e foi aluna de Design, também na UnB, entre 2013 e 2019, quando teve oportunidade de cursar três disciplinas no NicBio.

 

“Algumas das seleções têm muitos alunos, e tem muitos ilustradores bons na UnB, então eu não me sentia muito preparada para participar. Quando saí da seleção, tinha certeza que não iria conseguir. Fiquei muito surpresa quando recebi o e-mail", rememora a estudante.  

 

Hoje Catarina prepara-se para iniciar um novo vínculo com o Núcleo, desta vez, como bolsista do Programa de Iniciação Científica (Pibic). 

 

“Acho difícil pensar em geologia sem ilustração científica porque ela é, em muitos momentos, bastante visual. Então a ilustração científica auxilia muito nessa parte, seja para fazer registros quando estamos no campo ou fazendo alguma observação em laboratório, seja através de gráficos para representar estruturas e processos que seriam mais difíceis ou mesmo impossíveis de visualizar de outra forma, como o que ocorre internamente no planeta ou o que é muito antigo e só temos registros que possibilitam fazer um trabalho de reconstrução”, detalha a estudante. 

 

“Em relação ao design, acho que na parte da comunicação científica ele é muito importante para a construção de um bom infográfico. Uma boa composição, escolha de fontes, cores e etc. fazem uma grande diferença para a recepção e compreensão do conteúdo que se pretende transmitir. Em contrapartida, o design usa muito a parte estética da ilustração científica em projetos”, complementa Catarina Wilhelms. 

Filho de biólogo, Nicolau Souza teve contato com a ilustração científica na infância. Hoje utiliza em seus trabalhos o estojo que ganhou do pai na adolescência. Foto: Anastácia Vaz/Secom UnB

 

BIOLOGIA NA VEIA – Filho de biólogo, desde pequeno o estudante de licenciatura em Ciências Biológicas da UnB Nicolau Souza admirava desenhos, pinturas e reproduções do pai, e tentava copiá-los da maneira mais realista possível. “Claro que na época eu não sabia o que era a ilustração científica, só via as reproduções realistas e me admirava com a habilidade dos artistas em descrever a realidade por técnicas de desenho ou pintura”, conta. 

 

Quando Nicolau tinha aproximadamente 15 anos de idade, seu pai mostrou materiais e ilustrações que havia feito em um curso específico de ilustração científica e foi quando o garoto entendeu o que era essa atividade. “Foi na mesma época em que ganhei dele o estojo de lápis que utilizo até hoje”, destaca, com orgulho. 

 

Já na Universidade, quando estava no segundo semestre do curso, ele soube que Introdução à Ilustração Científica estava entre os minicursos oferecidos na Semana Universitária – era a chance de aprimorar o que já fazia livremente em casa.  

 

“Me inscrevi e fiquei feliz com as técnicas aprendidas em pouco tempo de curso, pois até então eu desenhava de uma maneira rudimentar”, avalia o estudante. Destas aulas e da troca de experiências entre professor e aluno, surgiu o convite para integrar a equipe do NicBio. 

 

Nos semestres seguintes, Nicolau cursou disciplinas ali que o ensinaram a desenhar com grafite, nanquim – aprofundamento do minicurso – e aquarela. Também passou por dois estágios em ilustração e três Pibics, quando teve oportunidade de produzir infográficos para uma divulgação científica em ornitologia e plantas medicinais. 

 

“Principalmente neste período de Pibic, percebi com mais amplitude a importância da ilustração científica. No meio acadêmico, ela é muito utilizada na descrição de estruturas e mecanismos biológicos, descobertas de novas espécies e revisões de classificação biológica”, afirma.  

 

“De maneira geral, a ilustração científica tem grande valor na divulgação científica, que é a transmissão do conhecimento produzido pela academia à população (haja vista os inúmeros esquemas explicativos de ação de vacinas veiculados na mídia nesses períodos recentes)”, resume Nicolau Souza. 

 

ORGULHO E PRECONCEITO – Motivo de grande dedicação para uns, a ilustração científica é pouco valorizada por outros. O professor fundador do Núcleo de Ilustração Científica (NicBio) da UnB, Marcos Ferraz, acredita que ainda há grande preconceito com o desenho, como se fosse “coisa de criança”. 

A ilustração Os besouros na folha (Crisomelídeos), do professor Marcos Ferraz, foi vencedora do XI Focus on Nature em 2011, com os prêmios do júri e de aquisição. Está atualmente no New York State Museum, nos Estados Unidos. Foto: Divulgação/NicBio

 

“Sua ludicidade pode induzir a este erro, porém são necessários alguns anos de trabalho intenso para a produção de uma ilustração de qualidade, e quando prazos são curtos e o volume de trabalho grande, desenhar é tudo menos ‘relaxante’. Quem não se ocupa com o desenho não tem ideia da quantidade de horas necessárias para realizar uma boa ilustração”, desabafa.  

 

Segundo ele, algumas vezes, as pessoas pedem 15 desenhos para uma monografia ou tese e querem tudo para a semana seguinte. Quando o professor responde que é impossível, elas muitas vezes se espantam e retrucam que é “só um desenho!”. 

 

“É necessário educar estas pessoas. Para fazer ‘só um desenho’ é preciso muita pesquisa sobre os modelos, qual o melhor ângulo para sua representação, quais detalhes incluir e que devem ser ressaltados etc... é uma conversa longa com quem pede. Afinal, a pessoa é a especialista na área e deve dar todas as informações ao ilustrador para que a imagem realmente represente o que precisa ser mostrado”, explana o docente. 

 

De acordo com Marcos Ferraz, virtualmente todas as técnicas artísticas podem ser utilizadas para a ilustração científica, mas as mais utilizadas são o desenho, a lápis ou a nanquim, e a aquarela, pela velocidade que pode ser realizada em comparação com a pintura a óleo, a qual demanda muitos meses de “secagem”. Ele ressalta, porém, que também se pode utilizar o acrílico, o guache, o lápis de cor e as técnicas de gravura, como a água-forte, que utiliza uma matriz de metal; a acquatinta, feita em talhe doce, produzindo áreas de tom; e até mesmo a litogravura, que envolve a criação de marcas ou desenhos sobre uma matriz com um lápis gorduroso.  

 

“Cada uma tem uma finalidade específica, uma maior ou menor facilidade de reprodução, mas, bem realizada, qualquer destas técnicas produz resultados excelentes”, garante o professor. 

 

LEGADO – Marcos Ferraz é o único docente a lecionar disciplinas de ilustração científica na Universidade de Brasília. “Não há uma previsão de vagas para esta área e temo que ao me aposentar, em alguns anos, ela venha a desaparecer na UnB. Vou trabalhar para que isso não aconteça”, assegura. 

 

“É uma grande pena. Seria muito bom se tivéssemos outros professores também da ilustração científica para dar vazão a esta demanda”, lamenta.

 

Não à toa o Núcleo de Ilustração Científica foi criado ligado à direção do IB, e não a um de seus vários departamentos. As disciplinas do NicBio começaram como restritas para Biologia, porém o interesse foi tão grande que o professor pediu a retirada desta condição. Assim, estudantes de qualquer curso de graduação da UnB podem cursá-las. 

 

“Já tive alunos de muitas áreas diferentes, da sociologia à arquitetura, da veterinária ao design. Procuro, ao longo do semestre, ir desenvolvendo um olhar diferenciado no aluno para que possa fazer uma boa ilustração científica. Muitas vezes alunos do curso de Artes Plásticas são os que mais têm dificuldade em se adequar a esta nova linguagem”, revela Marcos Ferraz.


“Muitos chegam com um desenho lindo, porém ‘artístico’, e preciso mostrar-lhes que nesta área, mais que uma linha expressiva, é necessário precisão e fidelidade ao modelo. Mas ao final do semestre a produção dos alunos é sempre muito, muito boa”, finaliza.

 

 

ATENÇÃO – As informações, as fotos e os textos podem ser usados e reproduzidos, integral ou parcialmente, desde que a fonte seja devidamente citada e que não haja alteração de sentido em seus conteúdos. Crédito para textos: nome do repórter/Secom UnB ou Secom UnB. Crédito para fotos: nome do fotógrafo/Secom UnB.