Cientistas da Universidade de Brasília conseguiram, pela primeira vez no mundo, analisar proteínas presentes em uma bactéria de grande importância para agricultura, medicina e nutrição a partir de um método inovador chamado proteômica top-down. Com a técnica, totalmente aplicada no Laboratório de Bioquímica e Química de Proteínas da UnB, foi possível observar mudanças nas estruturas e no comportamento da Corynebacterium glutamicum.
Ela secreta aminoácidos diferentes a depender das condições em que é cultivada. Pode produzir, por exemplo, glutamato, muito comum na culinária asiática, e lisina, bastante utilizada na alimentação de frangos e porcos.
Foram 20 anos de muito estudo até chegar a este resultado no Núcleo de Proteômica da Universidade de Brasília. Por meio da análise top-down, cujo grande diferencial é não quebrar as proteínas das amostras biológicas antes de inseri-las no espectrômetro de massa [aparelho utilizado para identificar massa, carga e componentes do material], os pesquisadores puderam perceber uma modificação ainda não descrita na literatura.
“Pode significar, por exemplo, que processos de estresses oxidativos durante o cultivo da bactéria podem afetar a produção do glutamato. E isso pode ser que ocasione mudanças na produção industrial em nível global, mas teria que haver estudos futuros para confirmar essas hipóteses”, explica o doutorando Reynaldo Melo, que é um dos principais autores da pesquisa no momento.
Em 2017, ele ingressou no mestrado em Biologia Microbiana do Instituto de Ciências Biológicas (IB) e, orientado pelo professor Luis Henrique do Vale, teve oportunidade de coletar, cultivar e lidar com cepas da Corynebacterium glutamicum. Em 2019, iniciou o doutorado no Programa de Pós-Graduação em Biologia Molecular, também do IB, e aí pôde enfim fazer as análises de tudo o que somou durante o mestrado.
“Após a espectrometria de massa, fizemos a identificação dessas proteínas em uma workstation [computador] e baseados nisso, conseguimos ver se algumas delas poderiam ser importantes, por exemplo, na produção do glutamato ou da lisina. E identificamos que na produção do glutamato tem uma proteína muito relevante com uma modificação que nunca havia sido descrita”, resume o estudante.
Em termos simples, o que se verificou foi uma mudança de massa molecular (acréscimo de 70 Daltons) e uma perda de dois resíduos de aminoácidos na proteína reguladora da produção de glutamato, conhecida como OdhI. Mas somente estudos complementares poderão afirmar com certeza que consequências essas mudanças podem trazer à produção de glutamato pela Corynebacterium glutamicum, se podem ativar ou inibir essa secreção, por exemplo.
“Isso pode ser até algo novo também, não sabemos ainda. A ciência avança a passos lentos, mas firmes”, ressalta o professor Marcelo Valle de Sousa, que coordena o Núcleo de Proteômica da Universidade de Brasília e o grupo de pesquisa em Bioquímica e Química de Proteínas.
PUBLICAÇÃO – Junto com Reynaldo Melo, Marcelo Valle e outros cinco pesquisadores assinam o artigo científico Revealing Corynebacterium glutamicum proteoforms through top‑down proteomics (Revelando proteoformas da Corynebacterium glutamicum por meio da proteômica top‑down, em tradução livre para português), publicado na revista Scientific Reports, da Nature, em fevereiro.
“Foi o primeiro trabalho de proteômica top-down para bactéria no mundo. Foi feito de forma qualitativa, pois não quantificamos proteínas. Queríamos ver o que tinha de proteoformas na bactéria”, esclarece Marcelo.
No estudo, foram identificadas 1.125 diferentes proteoformas de 273 proteínas, e 60% destas apresentaram pelo menos uma mudança na massa molecular. O docente adianta que hoje já existe um segundo trabalho em andamento, que pretende comparar as proteoformas e quantificá-las em condições diferentes. E também existe a intenção de fazer outros estudos com a bactéria modificada geneticamente para, assim, verificar novamente a produção de aminoácidos.
“Quando vamos implantar uma técnica, temos que começar de modelos mais simples”, explica Marcelo Valle ao falar da bactéria, cujo proteoma – conjunto de suas proteínas – é menor em comparação com outros organismos, como fungos; e justamente isso facilitou a análise proteômica.
“E foi a primeira vez que realizamos a abordagem top-down totalmente aqui no Brasil, aqui na UnB. Foi importante, tanto do ponto de vista de implantação da metodologia quanto também de resultados que podem ser explorados pelo nosso grupo e por outros grupos. Ficamos muito satisfeitos com a quantidade de resultados e de dados. Deu certo”, comemora o docente.
Também coautor do estudo, o professor Luis Henrique do Vale destaca o caráter inovador da técnica top-down utilizada.
“A outra técnica quebra a proteína em pequenos fragmentos antes de injetar no espectrômetro, por isso se chama bottom-up: você pega os pedacinhos, joga no espectrômetro e lá você tenta formar o quebra-cabeça dessa proteína. É de baixo para cima. Agora na top-down, a gente injeta a proteína inteira e quebra ela dentro do espectrômetro. Mas só de fazer isso, já estamos injetando tudo o que ela tem, toda a sequência, sem perda de aminoácidos e sem perda de outras moléculas modificadoras já ligadas neles”, detalha.
INFRAESTRUTURA – Para realizar as pesquisas com os métodos bottom-up e top-down, os cientistas do Núcleo de Proteômica do Laboratório de Bioquímica e Química de Proteínas da Universidade de Brasília têm de se organizar para ocupar o espectrômetro de massa com uma ou outra técnica a cada intervalo de meses. Isso porque ali há apenas um aparelho com a sensibilidade e a capacidade adequadas para estas análises, e quando está configurado para uma das metodologias, os trabalhos relacionados a outra seguem diferentes etapas.
“Eu parava três meses, fazia umas coisas e dava espaço para o pessoal continuar a linha, porque o espectrômetro não parava, tinha que coletar dados. Então, demorou um pouco [para atingirmos os resultados], mas sempre fomos avançando e bem. Depois observamos que com o modelo biológico já estava funcionando: foram os momentos mais felizes que eu tive. Depois o Reynaldo já estava entrando no mestrado”, relembra o orientador Luis Henrique do Vale.
“Este aparelho tem dez anos, foi fabricado em 2013. Por ser tão complicado – é dificílimo em termos físicos e químicos –, o tempo de vida dele já acaba com dez, 15 anos. Já está velho, porque as peças são muito, muito caras e complexas. Apesar de estar bonitinho, ele já é um senhorzinho de idade”, brinca o docente.
Ele pontua que, para seguir na vanguarda, e mesmo para estas análises mais preliminares, seria importante utilizar equipamentos mais modernos.
“Hoje conseguimos atingir até uma certa faixa, como 30 a 40 kilodaltons (KDa)... no máximo 45 kilodaltons. Então, ainda estamos perdendo informação. Com equipamentos mais modernos, poderemos passar a analisar até cem, 150 KDa, talvez mais. Se quisermos continuar esse avanço científico tecnológico do país, tem que haver investimento”, alerta o coordenador do Núcleo de Proteômica, professor Marcelo Valle.
"Neste momento um novo espectrômetro de massa será importante para o nosso laboratório, para a UnB, para o país. Precisamos de um equipamento novo, mais moderno, senão todo esse trabalho daqui a pouco não conseguiremos mais fazer. O equipamento vai ficando velho, mais difícil, né?”, provoca.
“Parece que é algo básico, e é. É pesquisa básica, pesquisa fundamental. A sociedade quer resultados concretos imediatamente. Mas entre isso e o resultado aplicado imediatamente tem um longo caminho. Mas o caminho é esse. Pesquisa básica sólida que gera resultados inovadores – e inovação é isso, aparece algo novo que ninguém nunca tinha visto. Pode ser muito importante”, declara Marcelo Valle.