Um artigo publicado por pesquisadores da Universidade de Brasília na revista Plos One revela, por meio da utilização da leitura de ruído sísmico, que o Distrito Federal chegou a ficar entre 20% e 30% mais silencioso durante o auge das medidas restritivas contra a covid-19, o que sugere a adesão ao isolamento social naquele período, ainda em 2020.
Os professores Susanne Maciel, da Faculdade UnB Planaltina (FUP), e Marcelo Rocha, coordenador do Observatório Sismológico (Obis) da UnB, utilizaram dados coletados pela estação sismológica que fica dentro do Parque Nacional de Brasília. No mesmo local, o Obsis gerencia a Estação de Infrassom da Rede Internacional de Monitoramento de Explosões Nucleares, única do tipo no Brasil.
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Os docentes da UnB que assinam a publicação são parte da equipe técnica do projeto Comprehensive Nuclear-Test-Ban Treaty Organization (CTBTO), uma rede mundial que recebe aporte de recursos da Organização das Nações Unidas (ONU) para aquisição de equipamentos que monitoram explosões nucleares, como forma de colaborar no banimento das armas nucleares.
As leituras utilizadas no artigo geralmente são descartadas nesse tipo de monitoramento, uma vez que representam a interferência humana no ambiente. Entram nessa categoria vibrações produzidas pelo deslocamento de veículos e de pessoas torcendo em um estádio, por exemplo.
"A assinatura [o tipo de vibração captada pelo equipamento] do movimento de carros é muito marcada. Como nossa estação fica monitorando continuamente, é um sinal a mais que podemos acompanhar com facilidade", explica Susanne Maciel.
O trabalho contou com a colaboração do professor Martin Schimmel, do Instituto de Ciencias de la Tierra Jaume Almera (CSIC), em Barcelona, na Espanha. "O impulso inicial foi deles e começamos a analisar os diferentes barulhos sísmicos gerados pelas atividades urbanas com o objetivo de entender os sinais e monitorar as diferentes atividades humanas", detalha a professora da FUP.
METODOLOGIA – Os pesquisadores iniciaram o processamento e a interpretação de dados partir da separação entre ruídos captados pela estação sismológica e informações utilizadas no monitoramento de armas nucleares. No Parque Nacional de Brasília, uma antena de estação de banda larga fica enterrada a cem metros no solo e grava cem amostras de dados por segundo.
Normalmente, esse tipo de observatório fica instalado longe da cidade para justamente evitar ou minimizar a ocorrência do ruído antrópico. A estação sismológica do Parque fica a cerca de 30 km do centro da capital do país e é próxima o suficiente da cidade para captar os ruídos que foram utilizados no estudo.
Os pesquisadores analisaram dados gravados pela estação entre 2013 e 2020 no Distrito Federal. Nesse período, eles passaram a procurar, como forma de comparação, dias e momentos que destoassem do comportamento médio do registro de ruído sísmico. Durante a vigência do primeiro decreto distrital sobre as medidas restritivas para enfrentamento à covid-19, publicado em março de 2020, o DF teve redução de 20 a 30% de ruído provocado pela ação humana.
Citada no estudo, a greve dos caminhoneiros de maio de 2018 também trouxe momentos de quietude para a capital federal. Outros eventos destacados no estudo, como exemplos de momentos ruidosos, foram dias de jogos na Copa do Mundo de 2014 e nas Olimpíadas de 2016 e durante a votação do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016.
As variações analisadas pelos pesquisadores aparecem em um gráfico e os deslocamentos do registro são considerados em termos de nanomilímetros. Certas épocas do ano, como de férias escolares, são facilmente observáveis, assim como a diferença entre dia e noite.
Os pesquisadores consideram o registro normal da cidade, que tem picos durante a semana e quedas de ruído durante os fins de semana, como o padrão a partir do qual se analisam os outros eventos. Os principais motivos dos declínios nos gráficos aos sábados e domingos se dá pelo reduzido número de pessoas se deslocando para o trabalho e menor número de veículos circulando.
PRIVACIDADE E COVID – Os pesquisadores notaram que o monitoramento da adesão às medidas de isolamento social pelas autoridades estava sendo feito a partir de telefones celulares e decidiram buscar formas mais anônimas de fazer a verificação. "Quando se tem esse tipo de monitoramento, é preciso ter dados pessoais. As operadoras têm nossos dados e acessavam para saber onde as pessoas estavam", afirma Marcelo Rocha.
Apesar de os dados não serem divulgados nominalmente, por estarem conectados a cada dono de aparelho, a questão ética persistiu na mente dos pesquisadores. Foi então que, após ler um trabalho internacional sobre monitoramento sísmico de ambientes no contexto da covid-19, os pesquisadores decidiram buscar a leitura desses dados normalmente descartados.
"Da forma que trabalhamos, fica garantido o anonimato, sem depender que uma empresa confirme que irá preservar a privacidade", aponta Marcelo Rocha.
POTENCIAL – "Hoje muito se trabalha com monitoramento, mas faz parte de trabalhos recentes que os sismólogos têm feito", afirma Marcelo Rocha. "Essa sismologia urbana é uma abordagem que aproxima a comunidade e a ciência. Há estudos demonstrando como a terra vibra em decorrência de eventos grandes e tem-se trabalhado muito esse sentido aliado à divulgação científica", acrescenta Susanne Maciel.
Os pesquisadores concordam que esse novo campo tem possibilidades de aplicação que trazem benefícios muito palpáveis para a comunidade. "Se investirmos nesse tipo de monitoramento, podemos relacionar o ruído com o início de rompimento de uma barragem, por exemplo", lembra Marcelo Rocha ao citar desastres ambientais recentes, como os ocorridos em Brumadinho e Mariana.
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Isso seria feito pelo método utilizado pelos autores do artigo, em que uma assinatura que indica o possível rompimento seria a marcação a ser comparada com os ruídos captados pelo sensor.
Martin Schimmel acredita que é possível melhorar a qualidade de vida e eficiência do dia a dia das cidades com esse tipo de monitoramento. "A sismologia urbana pode ser um componente das cidades inteligentes, contribuindo de forma independente e anônima para monitorar tráfego, greves e manifestações, por exemplo. Para que isso fosse aplicado em Brasília, seriam necessários mais investimentos", avalia o pesquisador.
Marcelo aponta ainda que, com recursos, seria possível aumentar o potencial desse tipo de análise. Segundo ele, o monitoramento sismológico realizado pelos pesquisadores, que teve resultados similares ao acompanhamento feito pelos celulares, mas com mais anonimato, foi feito de maneira pouco adequada. "Se tivéssemos mais estações no meio e ao redor da cidade, isso poderia ser enxergado de forma mais precisa, uma vez que, até a onda chegar a estação, perde intensidade", explica.