Estudo mostra que livros didáticos adotados por escolas brasileiras privilegiam cálculo de fórmulas sem mostrar para que servem no dia-a-dia.
Lucas é um garoto de 16 anos que deseja ter um físico invejável, mas detesta alimentos saudáveis e considera a prática de esportes tão ruim quanto a semana de provas do colégio. Encorajado pelos amigos a tomar um “suplemento alimentar”, o adolescente leva o produto para casa. Andréia, mãe do garoto, acaba encontrando o recipiente por acaso. Preocupada, faz um convite inusitado ao filho: investigarem, juntos, no laboratório de química onde trabalha, de que é feito o tal “suplemento”.
O uso de histórias como a de Lucas e sua mãe nas aulas de química das escolas de Ensino Médio foi proposta pela pesquisadora Carla Cristina da Costa em sua dissertação de mestrado Construindo estruturas químicas de substâncias desconhecidas: uma proposta de material paradidático. Carla Cristina mostra em seu estudo que os livros didáticos de química privilegiam o cálculo de fórmulas e a descrição das equações químicas sem esclarecer para que servem na prática. Uma deficiência que, na avaliação dela, não favorece a cidadania nem estimula os alunos. “Quando as substâncias e os materiais são substituídos pelas fórmulas e estruturas químicas que as representam, ficam desconectadas de aspectos que seriam relevantes para o seu entendimento”, explica a pesquisadora.
Ela analisou seis livros de química aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio para ano de 2007 e utilizados por escolas públicas e particulares. “Nós massificamos muito a questão da linguagem química, sem dar o punho teórico que aquilo ali merece. Nós nos prendemos às equações e às fórmulas químicas, e muitas vezes o aluno não sabe o que significa aquilo, não sabe de onde vem, não sabe para o que serve” explica a pesquisadora, que já deu aulas.
Carla Cristina acredita que o conteúdo estudado deveria desenvolver a capacidade de tomada de decisão do estudante frente a diversas situações cotidianas, como a automedicação, tema abordado em sua história. Após análise de cada um dos componentes da fórmula, sob a orientação da mãe, Lucas descobre, com surpresa, que o suplemento continha sustâncias utilizadas em medicamentos para obesidade e depressão. “Quando você tenta resgatar do aluno aquilo que ele sabe sobre a Química, a resposta é sempre a mesma: a fórmula. Da fórmula eles nunca esquecem, mas não sabem o seu significado”, conta Carla, que pretende aperfeiçoar a história e transformá-la em livro.
Os personagens Lucas e sua mãe nascem da preocupação da pesquisadora e do orientador da pesquisa, Gerson de Souza Mól, em oferecer uma alternativa para suprir as carências observadas nos livros quanto à formação da cidadania, contextualização e interdisciplinaridade. “Em primeiro lugar, pensei em uma forma de mostrar para os alunos como chegar às estruturas químicas dos compostos, uma vez que este conteúdo não é abordado no ensino médio dessa forma”, conta a pesquisadora.
Ela acredita que a história pode “ajudar os estudantes a ligarem a teoria à prática, a fórmula ao seu significado”. A análise do “suplemento” por Lucas e sua mãe no laboratório passa por várias etapas, desde a observação macroscópica da amostra – sua cor, se é homogenia ou heterogenia – até processos mais complexos. A pesquisadora também se preocupou em explorar o diálogo dos personagens. Lucas pergunta à sua mãe, entre outros, sobre Lavoisier e sua Lei da Conservação da Matéria e sobre Dalton e sua Teoria Atômica.
VESTIBULAR – Gerson Mól explica que a prioridade à nomenclatura e aos cálculos das fórmulas está orientada para o vestibular. “Essa forma tradicional do ensino da Química vem sendo muito questionada na licenciatura”, afirma. “O ensino que vemos é focado na memorização, naquela velha história de ‘decoreba’: os alunos decoram a nomenclatura e as regras para chegar a ela, mas decorar não é entender a lógica”, explica o orientador da pesquisa.
Para ele, a forma proposta pela pesquisadora é uma tentativa de dar mais significado ao objeto de estudo da química, e condiz com o que a legislação prevê: um ensino mais contextualizado e que seja capaz de formar um cidadão. “Dar mais sentido para o aprendizado do aluno, para que ele possa realmente entender, e não simplesmente passar no vestibular”, resume Gerson.
A professora Fátima Serrado, que dá aulas de química no 3º ano do Ensino Médio do Colégio Militar de Brasília, compartilha da percepção de Carla. Segundo ela, além das dificuldades que muitos estudantes apresentam para relacionar as fórmulas aos elementos, eles também não notam a importância da prática da química no dia-a-dia. “Sempre que ensino o que os elementos químicos fazem sem relacionar com fórmula, o interesse da sala é muito maior. Os alunos prestam mais atenção e fazem mais perguntas”, conta a professora.
Ela concorda com a necessidade de mudança de direcionamento do conteúdo dos livros didáticos. “De maneira geral, o nome de uma substância não é o mais importante, e sim a sua funcionalidade, para o que ela serve”, explica a professora, citando como exemplo o NaCl (cloreto de sódio), popularmente conhecido como sal de cozinha. Apesar de seu vasto uso na culinária e na produção de sabão e detergente, ao ser consumido em excesso o sódio faz com que ocorra a liberação de hormônios que causam a retenção de líquidos, aumentando a pressão sanguínea.