O fogo que destrói, incendeia e assusta é também outro fogo. Para povos e comunidades quilombolas residentes no Jalapão, área localizada no leste do estado do Tocantins (TO), é a chama necessária para atividades de subsistência como caça, coleta do capim-dourado e criação de gado solto. É também a brasa amiga que promove a biodiversidade no Cerrado, a exemplo da flor conhecida como cabelo-de-índio e de tantas outras espécies nativas, que dependem de certos regimes de queima para ter as condições ideais para florescer.
A perspectiva do fogo como aliado do meio ambiente é apresentada na tese Fogos gerais: transformações tecnopolíticas na conservação do Cerrado (Jalapão, TO). Defendida por Guilherme Fagundes no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade de Brasília, a pesquisa retrata as transformações no modo de vida das comunidades residentes em áreas queimadas, na vegetação local e no entendimento sobre o uso do fogo, a partir da implementação da Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo (MIF) na Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins (EESGT).
Uma das três Unidades de Conservação (UCs) do Cerrado, a estação serviu de experiência piloto na prática de MIF no país, por meio do projeto Prevenção, Controle e Monitoramento de queimadas irregulares e incêndios florestais do Cerrado (Projeto Cerrado-Jalapão).
“Antes da política de manejo, não apenas o fogo era combatido, mas as populações das comunidades locais que de alguma maneira fazem uso de fogo em suas formas de vida. Com essa mudança, o conhecimento tradicional e o modo de relação dessas comunidades com o fogo passam a ser celebrados”, explica Guilherme Fagundes. A tese recebeu menção honrosa na edição de 2020 dos prêmios Capes de Tese, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), e Lélia Gonzalez, da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).
Parte da pesquisa de Fagundes também deu origem ao filme etnográfico Outro Fogo, produzido no Laboratório de Imagem e Registro de Interações Sociais (Iris) do Departamento de Antropologia (DAN) da UnB. O curta-metragem registra as relações de afinidade e inimizade com o fenômeno do fogo na conservação do bioma Cerrado, bem como a luta contra incêndios e as técnicas usadas pela equipe atuante no manejo integrado do fogo na Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins. A produção foi agraciada com o primeiro lugar na edição 2018 do Prêmio Pierre Verger da ABA, na categoria Filme Etnográfico.
O trabalho rendeu, ainda, o ensaio fotográfico Colheita Dourada: a arranca do capim no gerais do Jalapão (TO), também agraciado com menção honrosa na edição 2020 do Prêmio Pierre Verger, na categoria Ensaio Fotográfico.
A TEMÁTICA – Nas últimas décadas, os incêndios florestais registraram aumento de escala e frequência recordes mundiais. Isso decorre de fatores como mudanças climáticas e modificação da vegetação nativa, que dá lugar aos campos de monocultura. Em paralelo a essas transformações, avança o debate sobre as melhores estratégias para prevenção e controle dos incêndios de alta escala.
Nesse contexto emerge a abordagem do MIF, que propõe o uso de queimadas controladas para prevenir grandes incêndios em épocas de seca intensa. “Essa prática busca evitar a ocorrência de um único evento de fogo, em alta escala e com efeitos negativos. O manejo promove queimas com tamanhos reduzidos e diversidade temporal e espacial”, explica Fagundes.
A técnica também visa promover a conservação e a biodiversidade em ecossistemas que dependem de certos regimes de queima, como o Cerrado. “Um dos objetivos do MIF é a transformação da lógica em que o fogo é visto por seus efeitos deletérios e como evento a ser combatido, passando a ser compreendido como elemento necessário em algumas configurações ecológicas, como nos ambientes chamados pirofíticos [que só evoluem com distúrbios decorrentes de regimes de queima]”, acrescenta o pesquisador.
>> Confira aqui o ensaio fotográfico Colheita dourada a arranca do capim no gerais do Jalapão (TO)
METODOLOGIA – O trabalho realizado por Fagundes, no âmbito do Laboratório da Antropologia da Ciência e da Técnica (LACT/DAN), consiste em uma pesquisa etnográfica, que envolve a imersão do pesquisador no modo de vida a ser estudado. Para isso, ele permaneceu por 11 meses em trabalho de campo junto a populações residentes na Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins e a profissionais que atuam na unidade.
“Se quisermos compreender a diversidade dos regimes de fogo, precisamos compreender a diversidade de formas de vida humana e não humana que convivem com esse fogo. Precisei compreender as práticas agrícolas, de criação de gado e de caça que se utilizam do fogo”, detalha Fagundes sobre o aprendizado adquirido no convívio com moradores, brigadistas, agentes de manejo, gestores e outros profissionais da área no Jalapão.
Orientador do estudo e docente do Departamento de Antropologia (DAN), Carlos Sautchuk esclarece que “uma pesquisa etnográfica dessa natureza consegue detectar em minúcias a articulação entre conhecimentos tradicionais e conhecimentos científicos”. O docente enfatiza ainda que “compreender as possibilidades dessa conjugação é fundamental para encontrar soluções para a crise ambiental contemporânea”.
A pesquisa analisa as transformações decorrentes da Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, articulando a investigação a três subáreas da antropologia: a da técnica, a da vida e a da tradição de estudos biopolíticos.
“O estudo das técnicas é uma análise da relação entre humanos e não humanos (animais, ambiente, vegetais) e envolve uma abordagem interdisciplinar, favorecendo o diálogo com outros saberes que estão representados na academia”, explica Sautchuk.
O docente afirma que o trabalho teve diálogo intenso com a ecologia. Ele avalia que a pesquisa traz avanços ao demonstrar como se dá a interlocução entre a nova política de gestão do fogo implementada pelo Estado brasileiro, impulsionada pelas contribuições da ciência, e as práticas de uso do fogo das comunidades tradicionais.
Em relação à perspectiva da antropologia da vida, Fagundes explica que a abordagem “fornece as teorias nativas sobre esses processos vitais e traz para a universidade teorias que outros povos têm sobre esses processos”. O pesquisador destaca que, para compreender o comportamento do fogo, é fundamental saber mais sobre os processos vitais que ele aciona nesses ambientes: de crescimento da vegetação, de atração de animais que se beneficiam de áreas queimadas e vários outros.
Na abordagem biopolítica, o pesquisador cunhou o conceito de piropolítica com o objetivo de evidenciar que a relação sobre a gestão do fogo hoje é pautada por uma política de modulação dos regimes de queima. Segundo ele, “antes, a relação entre profissionais da gestão ambiental e populações tradicionais era pautada, sobretudo, pelo conflito administrativo e jurídico, baseando-se na autorização ou não autorização das práticas de queima. Hoje, essa relação é sobre como realizá-las”.
Outro ponto central do trabalho é a evidência das múltiplas possibilidades de relação com o fogo. A ideia se consolida em quatro capítulos da tese, que refletem modos de relação com o fenômeno: habitar, combater, prevenir e manejar.
“Analiso esses quatro modos de relação com o fogo de maneira simétrica. Isso me possibilitou olhar para o manejo, que é o último deles, não a partir de uma perspectiva de completa ruptura em relação aos demais, como se ele fosse o modo mais correto e racional. Dentro de um processo de transformações técnicas, o manejo é apenas mais uma tecnologia quando comparado aos demais”, elucida Fagundes.
VANGUARDA – A tese de Fagundes agrega ao acervo científico do país novos conceitos e considerações sobre manejo do fogo a partir da perspectiva antropológica. "A temática ainda é pouco estudada por antropólogos brasileiros, estando mais consolidada na França, onde é vinculada à antropologia da técnica”, salienta o autor.
Para agregar a experiência dos pesquisadores franceses ao trabalho, Fagundes realizou parte de seu doutorado no Collège de France, em Paris. O pesquisador permaneceu na instituição por oito meses, onde atuou junto a pesquisadores do Laboratoire d'Anthropologie Sociale.
Outra contribuição do trabalho é associar o estudo da tecnodiversidade (referente a diversidade de modos de relação humano junto a ambientes, animais, plantas e outros seres) ao estudo da biodiversidade (que se atém às diferentes formas de vida). “Um dos pontos altos da tese é compreender como diferentes grupos humanos se relacionam de formas diversas com o fogo e como esses grupos estão interagindo. É uma discussão significativa em torno de questões ambientais, por meio de uma metodologia potente para mostrar a diversidade de relação e modos de vida”, avalia Sautchuk.
A pesquisa fomentou a realização do 2º Seminário Transformações técnicas em perspectivas locais, entre 1° e 4 de março, com a temática Técnica e vida: imbricações e desafios etnográficos. “O seminário é um resultado direto dos avanços que o trabalho trouxe na relação entre os campos da antropologia da vida e da antropologia da técnica no Brasil. É um evento internacional que fortalece a pesquisa da UnB e do país”, conclui Sautchuk.
O estudo foi realizado com bolsa de doutorado custeada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), além de bolsa de doutorado sanduíche no exterior da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Confira o documentário etnográfico Outro Fogo: