Calçadas incompletas, danificadas e interrompidas foram os principais problemas identificados. Realidade contraria desejo de Lúcio Costa.

Calçadas em Brasília
Foto: Luana Lleras/UnB Agência

Lúcio Costa tinha a melhor das intenções. O arquiteto desenhou uma cidade com uma série de atributos urbanísticos que favoreceriam quem andasse a pé. Mas, durante a execução do projeto, e ao longo do desenvolvimento de Brasília, o pedestre acabou esquecido. A cidade concebida para caminhar virou a capital do automóvel.


Cinquenta anos depois, muitos dos caminhos do Plano Piloto não só não foram definidos e implementados como estão ameaçados. É o que sustenta a pesquisadora da Universidade de Brasília, Marilene Menezes, em sua dissertação de mestrado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. "Brasília está se tornando uma cidade absurda porque não previu o trânsito a pé", afirma.


Segundo a pesquisadora, tal qual na ocasião da construção de Brasília, as calçadas surgem desordenadamente, em conseqüência das construções, mas não fazem parte de um planejamento único, como ocorre com as vias destinadas aos automóveis. "Sem um plano estratégico, os passeios são construídos aqui e ali, cada um à sua maneira, não formando conexões inteligentes que favoreçam o trânsito a pé", explica. "O trânsito de pedestres exige projetos, da mesma maneira que se projetam ruas para carros", afirma.


Lúcio Costa acreditava que, embora concebida de forma a reverenciar a monumentalidade, a nova capital era destinada ao convívio humano. A concepção de espaços separados para motoristas e pedestres, unidades de vizinhança e prédios erguidos sobre pilotis foram alguns dos conceitos que, na visão do arquiteto, estimulariam o trânsito a pé. O urbanista chegou a descrever como imaginava esses deslocamentos, mas não os detalhou.


"Como imaginou a cidade crescendo aos poucos, Lucio Costa acreditava que os caminhos deveriam ser consolidados na medida em que fossem abertos pelas pessoas", conta Paulo César Marques, professor de Engenharia da UnB. Entretanto, a ausência do arquiteto nos canteiros de obra, a incompreensão dos construtores e a pressa em erguer a nova capital fizeram com que as ideias se perdessem.


DESVIO -
Durante dois anos, em variados turnos e horários, Marilene percorreu as Asas Sul e Norte observando como as pessoas fazem seus caminhos, identificando os fatores que favorecem e dificultam a vida de quem anda a pé. Calçadas incompletas, danificadas, que não se conectam com outras já existentes e interrompidas, principalmente por invasões de área pública e diferenças de nível no piso, foram os problemas mais comuns relatados.


Sem falar na ausência de passeios, em muitos trechos, que obriga os pedestres a usarem as áreas verdes, terrenos vazios, bordas do asfalto e até mesmo a passarem por baixo de viadutos. "A desconsideração para com o pedestre o coloca em situações de desconforto, de insegurança e de constrangimento", afirma Marilene.


Segundo a assessoria de comunicação da Administração Regional de Brasília, órgão responsável pela manutenção das calçadas da cidade, não existe uma equipe técnica que faz vistorias diariamente para verificar os problemas existentes e diagnosticar as necessidades do pedestre.


Além de identificar as dificuldades dos pedestres, Marilene percebeu que em todo o Plano Piloto a maioria das pessoas caminha nos passeios, mas tendem a fazer percursos em linha reta. Quando as calçadas não atendem a esse propósito avançam por caminhos que elas próprias criam. Ao final de sua dissertação, mostra que o traçado do Plano Piloto permite caminhar em linhas retas e de forma inteligente, desde que haja passeios em todas as quadras. "Se a cidade é boa para o pedestre, ela é boa para todo mundo", acredita.


A pesquisadora descreve um modelo que funciona. Entre as quadras 8 e 9 da Asa Sul, é possível trafegar a pé seguindo o calçamento desde a altura das 600 até as 900. Suzana Campos, estudante de Biologia da UnB, usa um desses trajetos todos os dias. Ela mora na 408 Sul e caminha até a academia, na 108 Sul.


Ilustração dos percursos feitos pelos pedestres
Ilustração:Virgínia Soares/UnB Agência


POLÍTICAS -
Marilene refuta a tese de que Brasília foi feita para carros, mas reconhece que a ausência de uma política para o pedestre foi um dos fatores que acabaram incentivando o uso do automóvel. No Distrito Federal, há um carro para cada 2,2 habitantes, segundo dados do Departamento de Trânsito (Detran). E Brasília é a 9ª capital brasileira com o maior número de veículos por morador, segundo dados do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). "Se por um lado falta atenção com a qualidade do espaço destinado ao pedestre, tanto no Plano Piloto como em outras cidades do Distrito Federal, por outro crescem os projetos voltados para a fluidez do trânsito de veículos", afirma Marilene.


Joel Rodrigues, gerente de Engenharia do Detran, explica que o órgão de trânsito chegou na cidade depois que a estrutura de urbanização e pavimentação já estava concluída. "Quem fez o projeto urbano pensou na beleza plástica e não se preocupou com o pedestre", defende. "O Plano Piloto tem um traçado próprio para veículos. Como possui grandes avenidas e espaços abertos, propicia o trânsito de pedestre".

ATROPELAMENTOS - A falta de infraestrutura adequada e pensada para o pedestre, aliada à necessidade de quem anda a pé de encurtar caminhos, vai além de um problema urbanístico. Ao utilizarem a beirada das pistas para se movimentarem as pessoas colocam em risco a própria vida. Em 2009, 116 pessoas morreram atropeladas. O número representa 27,4% do total de vítimas fatais no trânsito nesse período.


Pedestres ouvidos pela UnB Agência enumeram outros motivos que também levam os pedestres a se arriscarem nas pistas. As grandes distâncias entre as faixas de pedestre em relação aos pontos de ônibus e a má preservação das passagens subterrâneas do Eixão estão entre eles. José Wilson de Oliveira, funcionário da Novacap, caminha todos os dias da L2 até o Eixão por um caminho de terra. "Se eu fosse usar as calçadas gastaria mais tempo", enfatiza. Vera Lúcia Pereira, moradora de São Sebastião que trabalha no Plano Piloto critica a distância entre as passagens subterrâneas, de aproximadamente 700 metros. "Se eu desço do ônibus na altura da parada de ônibus, tudo bem, mas e se calhar de estar no meio da quadra e ter de fazer a travessia".


TIPOS DE PEDESTRES


Durante a observação dos caminhos e a experimentação dos percursos, a pesquisadora identificou três tipos de pedestre no Plano Piloto:

Do quadrante - é aquele que mora no Plano Piloto e realiza viagens a pé na parte em que reside, especialmente para chegar ao comércio, ao trabalho, à escola, fazer cooper ou caminhadas. Realizam deslocamentos formando pequenos círculos.

Do Plano Piloto - é aquele que mora em uma parte do Plano Piloto e depende de serviços de outra parte usando, para isso, na maioria das vezes, o transporte coletivo, especialmente entre as quadras 400 e 600 ou  500 e 900.

De Fora - é aquele que mora em outras cidades do Distrito Federal, mas trabalha no Plano Piloto. Realizam viagens no sentido transversal, em geral do ponto de ônibus até o local do emprego.