“De forma simples, flexível e efetiva as parteiras tradicionais brasileiras promovem saúde e bem-estar às mulheres e suas crianças durante o parto e o nascimento, com uso de ervas em chás e banhos, orações e cantos de rezas, simpatias e evocações, toques e posições que compõem os saberes e as experiências da arte e das ofício delas”. Assim, o livro-DVD Esse Dom que Deus me Deu - a arte e o ofício das parteiras tradicionais do DF e GO, escrito por Daraíma Pregnolatto e Silvéria Santos, investiga essas mulheres que se denominam parteiras, raizeiras, benzedeiras e rezadeiras. Em reconhecimento ao papel dessas pessoas para a saúde coletiva, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu 5 de maio como o Dia Internacional das Parteiras e Parteiros Profissionais.
O livro derivou da tese de doutorado de Silvéria Santos, Parteiras tradicionais da região do entorno de Brasília, Distrito Federal, defendida em 2010, na UnB. Silvéria é enfermeira obstetra e lecionou na curso de graduação em Enfermagem e Obstetrícia da UnB até 2016, quando se aposentou. Interessada em dar visibilidade às parteiras e seus saberes e tentar reverter o processo de desaparecimento do ofício, a professora se debruçou num trabalho que durou três anos.
O processo não foi fácil. Foi difícil encontrar muitas dessas parteiras – umas pela distância (a maior parte mora em zonas rurais de difícil acesso e de comunicação limitada), outras tinham medo de represálias e houve ainda as que demonstraram desinteresse. E algumas faleceram durante esse período.
Perguntada sobre a identidade dessas mulheres, Silvéria Santos explica que são muito simples. “Elas se definem intuídas por Deus, por uma figura maior. Um poder supra humano, a que elas nomeiam Jesus, Maria, meu santo tal, minha santa tal. Varia muito de acordo com a cultura da região. Ela quer dizer que é uma força maior que a impulsiona a ir e cuidar e fazer”, explica.
Na região do DF e de Goiás, foram identificadas 55 mulheres e dois homens – José dos Santos Rosa, conhecido como Zé Preto da comunidade quilombola Kalunga, em Cavalcante, e Sebastião Profeta do Amaral, de Pirenópolis. Os dados foram adaptados ao Inventário do Patrimônio Histórico e Artístico e Nacional com o objetivo de registrar como Patrimônio Cultural Imaterial do Distrito Federal e Entorno, além dos municípios de Palmeira de Goiás, Goiânia e as Comunidades Kalunga.
Na obra, as autoras afirmam ser necessário que as parteiras também se tornem alvo dos sistemas de saúde e de educação brasileiros. A proposta é promover articulação com a coordenação da Rede Certific - Secretaria de Educação Tecnológica do MEC, no sentido de planejar programa de reconhecimento e certificação do Ofício das Parteiras Tradicionais, conforme aceitação e escolha das parteiras em se inserirem no programa. “Tal iniciativa contribuirá para atender ao proposto na Portaria Ministerial da Rede Cegonha, que faculta a capacitação e atuação qualificada das parteiras tradicionais na política de redução dos índices de mortalidade materna e neonatal, da violência institucional e das cesáreas desnecessárias em nosso país, como acordo para atender ao 5º Objetivo do Milênio, pactuado pelo governo brasileiro”, declaram Daraíma Pregnolatto e Silvéria Santos no prefácio.
O quê há de científico das práticas do partejar, mesmo que desconhecido pelas parteiras pelo lado da pesquisa acadêmica, mas atestado pela experiência, está registrado na obra. “Fizemos revisão bibliográfica de todos os estudos de farmacologia e farmacognosia explicando qual o princípio ativo das ervas usadas pelas parteiras pesquisadas no livro e quais as formas de ação, como elas usavam”, relata Santos.
Sobre isso, a professora relembra o relato da parteira Edna Conceição de Oliveira, de Padre Bernardo, GO. “Dona Edna diz assim: Minha filha, não sei o que acontece comigo. Eu fico ali, banho aquela mulher, preparo os paninho (sic) dela” conta. “Elas usam incenso para toda a roupa que vai ser usada pela mulher e pela criança. Passam no incenso e fica aquecidinho. O que fazemos em relação a isso no hospital? Botamos o berço aquecido, com sondas e etc. Porque se o recém-nascido ficar exposto à frieza, ficar com sua pele exposta, perde muitas calorias, principalmente se ficar com a cabeça exposta. Perde peso, em torno de 15% a 25% do peso, nas primeiras 24 a 48 horas”, prossegue. “Então, ninguém disse isso para as parteiras. Ela intuiu. Ela aprendeu com as mais velhas fazendo isso. Ela fez da primeira, da segunda vez, no arranjo, depois, ela foi tendo experiência tanto no cuidado de outras mulheres, quanto no seu processo de gestar, parir e maternar”, explica.
LIDERANÇA – Egressa da Universidade Federal do Pernambuco (UFPE), a professora Silvéria Santos conheceu o projeto das parteiras tradicionais da região de Caruaru (PE), na década de 1970. “Eram mulheres muito experientes, que recebiam curso, que faziam reuniões para saber o que faziam, como faziam e porque faziam. Nesta perspectiva, eram registradas na Secretaria de Saúde, que as acompanhava. Elas recebiam a mochila da parteira, que hoje é chamada de Kit Parteira”, conta.
“Parteiras, cuidadoras, aparadeiras, mulheres que pegam menino”, são estes alguns dos termos usados para descrever as parteiras tradicionais. Além das ervas, cantos, rezas e bênçãos, elas desempenham, segundo Santos, papel de liderança. “Influenciam as mulheres ao autocuidado e à assistência vinculando-as ao Sistema de Saúde. Parteira sempre fez isso e ainda faz”, diz.
“Para a mulher que está parindo, o papel da parteira é dar suporte. Para a comunidade, é líder. Para aquela família, ela é referência de cuidado, de sabedoria, de discernimento, de justiça. Conheço parteira que consegue minimizar as violências do homem com a mulher, dos maridos com os filhos”, descreve.
DESAPARECIMENTO – A obra afirma que as parteiras tradicionais estão em processo de desaparecimento. São vários os motivos, desde desistência até pouco interesse por parte da rede oficial de saúde da mulher. “A falta de apoio às práticas tradicionais, de uma forma geral, determinou também a migração desta população das áreas rurais para as urbanas”, diz Silvéria Santos. Uma vez na cidade, elas não encontraram a mesma valorização do ofício ou mesmo reconhecimento. Ademais, o livro menciona que “algumas relataram ameaças que receberam de médicos ou órgãos oficiais para que não exercessem de fato sua arte, com o risco de infringir a lei e até serem presas. Infelizmente, isto ainda é uma realidade”.
A própria publicação aponta para novos horizontes em que identifica, nos centros urbanos, o ressurgimento de interesse de retomar as práticas. Percebe-se maior adesão pelo parto em casa ou em ambientes humanizados, além da formação de novas parteiras, parteiras obstetras, enfermeiros parteiros e doulas.
“Estão com muitas dificuldades de renovação, porque com o biocontrole, segundo Foucault, há uma necessidade para que determinada cultura, dita moderna, se cientifique e anule o que sai do controle desse poder instituído”, avalia Santos. “Esse biocontrole já fez estrago muito grande, como fez com a amamentação no pós-guerra. Fez com o parto, mudando do parto domiciliar para o parto hospitalar. Fez com a via do parto, do parto vaginal para o nascer cirúrgico abdominal, que é a cesárea. Agora a população no mundo, e principalmente no Brasil, está acordando para os efeitos danosos dessas práticas ostensivas”, encerra.
Professora na UnB desde 1994, Silvéria Santos, apesar de aposentada, continua coordenando o projeto de atividade contínua de extensão (PEAC) Promoção da Saúde Sexual e Reprodutiva - Curso de gestantes, casais grávidos e paridas, que ocorre no Hospital Universitário (HUB). Gratuita, a iniciativa é aberta a quem se interessar. Os encontros ocorrem às sextas-feiras, às 11h.