As criptomoedas – a exemplo do bitcoin – não vão substituir o dinheiro convencional, como seus criadores esperavam, mas abrem caminhos não imaginados: podem contribuir para uma reconfiguração técnica do sistema financeiro. Essa é uma das principais conclusões do livro Bitcoin: a utopia tecnocrática do dinheiro apolítico, escrito pelo professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados sobre as Américas (PPGECsA) da UnB Edemilson Paraná e publicado este ano.
A obra, que em breve receberá traduções em inglês e espanhol, é resultado da tese de doutorado defendida pelo docente no Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGSOL/UnB) e inova ao mostrar que as criptomoedas são produto de um conjunto de fenômenos sociais, e não somente de desenvolvimento tecnológico.
A tese foi orientada pelo professor Michelangelo Giotto Santoro Trigueiro, do Departamento de Sociologia, e coorientada pela professora Maria de Lourdes Rollemberg Mollo, do Departamento de Economia. O trabalho de doutorado foi escolhido pelo PPGSOL para concorrer ao Prêmio Capes de Tese 2019, concedido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
“A maioria das análises sobre o assunto está centrada na tecnologia pela tecnologia, de uma maneira, muitas vezes, celebracionista e ufanista. A partir das ciências sociais, explorei o conteúdo social das criptomoedas”, explica o autor, que é também professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC) e vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da mesma universidade.
“Num esforço multidimensional, uso ainda ferramentas da economia, ciência política e filosofia, pois não é possível olhar somente um aspecto de processo tão abrangente como esse”, completa Paraná.
De um ponto de vista mais amplo, a pesquisa que resultou no livro é uma tentativa de produzir análise sociológica da dinâmica econômica a partir de objetos tecnológicos de ponta – como o bitcoin – , observando a interação entre tecnologia e economia.
“Eu analiso a relação entre capitalismo financeiro, de um lado, e a revolução informacional, de outro, com um olhar dedicado às tecnologias que estão impactando consideravelmente vários campos da vida social”, explica o professor.
O trabalho é continuidade de uma agenda de pesquisas que Edemilson Paraná vem desenvolvendo desde sua dissertação de mestrado – que também virou livro –, defendida igualmente na Sociologia e laureada com o Prêmio UnB de Dissertação 2015. No caso do mestrado, a pesquisa debruçou-se sobre a digitalização do mercado financeiro e o papel das tecnologias da informação e comunicação (TICs) no processo de financeirização da economia mundial, o que Paraná chamou de finança digitalizada.
PIONEIRO – A palavra criptomoeda vem de criptografia, pois tem na sua base o mecanismo criptográfico (oculto, escondido). É basicamente uma moeda que esconde a identidade e as transações de quem a utiliza, por meio da tecnologia chamada blockchain. Quando um usuário faz uma operação com uma criptomoeda, uma composição de números e letras ocultam sua identidade por meio de algoritmos.
O bitcoin surgiu há 11 anos e é a maior e mais importante criptomoeda da atualidade. “Ele quase se confunde com o conceito de criptomoeda”, explica o docente. Hoje já são mais de 2 mil criptomoedas em operação no mercado.
“Todas são variações, em maior ou menor grau, do conceito que foi introduzido pela primeira vez em 2009 pelo bitcoin: ou seja, a ideia de uma troca monetária criptografada, por meio da tecnologia blockchain”, afirma. O professor lembra que o bitcoin corresponde sozinho a cerca de metade do valor de mercado de todas as outras criptomoedas.
O blockchain é uma espécie de grande planilha, que permite que dados sejam alterados e editados ao mesmo tempo por vários usuários, que registram todas as transações que ocorrem em tempo real. Essa planilha fica na nuvem e é gerida por toda a comunidade de usuários. Ela é descentralizada, baseada numa tecnologia típica da internet, a peer-to-peer, que possibilita justamente que cada computador conectado desempenhe as funções convencionais de rede, e não único servidor.
Portanto, o bitcoin permite uma troca direta, sem a necessidade de uma instituição financeira, como um Banco Central, ou autoridade que compense essa troca. Diferentemente do dinheiro tradicional, em que autoridades compensam as trocas e garantem que não vai haver fraudes, por exemplo.
INOVAÇÃO – O bitcoin foi criado com o objetivo de substituir a moeda dos Estados, para que estes não tivessem o controle do dinheiro. A inspiração para esta invenção vem de teorias econômicas e filosofias políticas com viés liberal/neoliberal radical, que pregam que cada agente privado deveria emitir suas próprias moedas e que elas competiriam no mercado de tal maneira que os usuários escolheriam a mais eficiente.
A emissão monetária seria feita por um computador com base num algoritmo pré-definido e isso organizaria a dinâmica da troca. Assim, o bitcoin nasce a partir da ideia de se criar um dinheiro não inflacionário, contrário ao que supostamente seria o dinheiro do Estado, visto como eminentemente inflacionário.
Porém, no livro, Edemilson Paraná discute por que essa vocação inicial do bitcoin não se tornou possível. Segundo ele, o dinheiro depende fundamentalmente de uma dinâmica política. “É por isso que eu chamo isso de utopia. Os bitcoiners têm essa utopia de que é possível, no capitalismo, livrar o dinheiro da política, do Estado, da dinâmica jurídica. Mas não é possível. O que os seus entusiastas defendem não vai ocorrer, mas as criptomoedas vão produzir outros efeitos, sobretudo consequências tecnológicas inovadoras”, argumenta.
De acordo com o pesquisador, o bitcoin nasce para “derrotar os Estados”, mas o que acontece é quase o oposto: os Estados hoje estão se utilizando desses mecanismos tecnológicos para reconfigurar, reconstituir e redesenhar o seu poder sobre o dinheiro. “O bitcoin não irá substituir as moedas estatais, mas vai influenciar o modo como essas moedas estatais funcionam. É uma dança complexa nesse paradoxal mundo do dinheiro”, resume.
Outro desdobramento importante das criptomoedas, destacado por Paraná, é que elas funcionam hoje como um ativo especulativo no mercado financeiro, juntando-se às ações, que visam a obtenção de ganhos de curto prazo. Esse aspecto, que não é necessariamente benéfico, garante a continuidade de sua função social, segundo o autor do livro.
Além disso, as criptomoedas começaram a ser utilizadas para acobertar crimes, como evasão fiscal e lavagem de dinheiro, pois são uma forma quase totalmente anônima de esconder recursos.
“Existem traficantes escondendo suas riquezas em bitcoin; ele é utilizado também em mercados ilícitos da deep web, que é a camada da rede que não é imediatamente acessível para o grande público, e também para ser trocado sem ser rastreado pelos regimes jurídicos e por Estados”, explica o pesquisador.
Porém, de forma paradoxal, elas também servem para proteger ativistas de causas sociais que são perseguidos por Estados, como aconteceu na Primavera Árabe ou mesmo no caso do Wikileaks. O que permite que recursos sejam repassados para ações sociais ou políticas de forma mais segura e anônima.
ACHADOS – O livro conclui que as criptomoedas não vão, portanto, substituir o dinheiro convencional, mas abrem possibilidades inéditas, reforçando a chamada nova economia das plataformas. É esse processo que fortalece negócios como Google, Facebook, Twitter, Uber, entre outros. A obra afirma que o sistema financeiro é a ponta de lança dessas novas aplicações tecnológicas.
“Pouca gente sabe, mas o mercado financeiro está antecipando, desde a década de 1980, o desenvolvimento de várias tecnologias que vão ser aplicadas em outros campos da vida produtiva e social somente décadas depois”, declara Edemilson Paraná.
Em suma, o autor conclui que o desenvolvimento das novas tecnologias utilizadas no mercado financeiro serve de base, acelera e intensifica dinâmicas de reestruturação, transnacionalização da produção, financeirização e neoliberalização da economia.
“O casamento entre capitalismo financeiro, de um lado, e revolução informacional, de outro, expressa-se por meio do que eu chamei de tecnologias cognitivas, que são aquelas que afetam a nossa percepção, nossa relação com a dinâmica de espaço e tempo. A partir do desenvolvimento dessas tecnologias cognitivas, aparecem inovações financeiras, as mais diversas, entre as quais as criptomoedas”, explica.
CONTROLE ESTATAL – Bitcoin: a utopia tecnocrática do dinheiro apolítico mostra ainda que países se posicionam de diversas formas em relação ao bitcoin: existem os mais permissivos, os relativamente indecisos e os que simplesmente proibiram a moeda, como é o caso da China. “De um lado, ela proibiu completamente o bitcoin, de outro, o Estado chinês passou a desenvolver a tecnologia blockchain ele mesmo e irá lançar, em breve, o seu dinheiro digital, o yuan digital”, aponta o professor.
“Quando o bitcoin surgiu, os seus criadores e defensores eram contra ideologicamente imaginar que os Bancos Centrais poderiam se utilizar dele para redesenhar a relação de emissão monetária, do dinheiro. E é o que, de certo modo, pode estar acontecendo!”, analisa Paraná.
Por volta de 2017, quando a moeda digital começou a se valorizar muito (um bitcoin chegou a valer 18 mil dólares), organismos internacionais iniciaram discussões de forma mais séria sobre regulamentação do bitcoin. Porém, desde então, o tema continua sem consenso. “Há muitas disputas em torno disso, e o ambiente segue como um espécie de faroeste financeiro, em que muita coisa pode acontecer, entre fraudes inúmeras (eu cito várias no livro), até todo um ecossistema de empresas, agentes e investidores que vão se beneficiando desse espaço e crescendo com ele”, observa o docente.
No Brasil, as criptomoedas ainda não estão regulamentadas. Há discussões em andamento no Congresso Nacional sobre como proceder, e a única regra válida é para efeitos de Imposto de Renda, em que é preciso declarar os ganhos com o bitcoin.
“É um fenômeno muito novo e não existe, na verdade, nenhum modelo que sirva de exemplo. Os reguladores estão tentando encontrar paralelos para comparar e pensar alternativas de regulação que funcionem”, finaliza.