A pesquisadora Gilda Furiatti reconstitui o processo criativo de Nicolas Behr. Lúcio Costa, Paulo Bertran e Clarice Lispector influenciaram o autor na construção de seus versos.

Ele pisou em Brasília na década de 70 e ficou espantado com o cinza do concreto que o cercava. Refugiou-se na poesia e percebeu que a cidade ganhava cores com o passar do tempo. “As artes e a árvores tornaram Brasília viável para mim”, conta Nicolas Behr, poeta que se intitula candango porque viu a cidade crescer.


Behr mora em Brasília há 36 anos e o que escreve é uma reflexão constante sobre a nova capital. “Minha poesia tem uma relação umbilical com a cidade. Se não houvesse Brasília, não haveria minha poesia”, diz. Nos anos 70 e 80, o poeta costumava vender seus livros nas filas de eventos culturais, nas portas de shows, de espetáculos de teatro e em bares. “Iogurte com Farinha”, um de seus primeiros livretos, vendeu 8 mil cópias apenas no boca a boca.


Até hoje, Nicolas Behr vende pessoalmente os livros que escreve. Na Feira do Livro, em 2005, ele expôs os títulos em uma das bancas. A pesquisadora Gilda Furiati foi à feira em busca de um tema para a dissertação do mestrado em Literatura que fazia naquele ano. Ela queria analisar a obra de algum autor por meio do estudo dos caminhos que levam à criação. Esse estudo chama-se Crítica Genética e, como o próprio nome diz, é usado para determinar o DNA de uma obra, ou seja, desvendar o processo criativo do artista a partir das referências culturais dele. Na maior parte das vezes, essa análise é feita em trabalhos póstumos, a partir de manuscritos e anotações do autor.


Quando avistou Nicolas na feira, Gilda decidiu que ele seria o assunto da pesquisa. A pesquisadora viu a oportunidade de dialogar com o poeta ao longo do estudo. “Ele escreve sobre Brasília e está vivo. Quem sabe eu posso fazer a genealogia da obra com um artista vivo?”, pensou. Ela saiu com a sacola cheia de livros e uma vontade imensa de mergulhar no processo criativo de alguém com quem poderia conversar. Nasceu assim Brasília na poesia de Nicolas Behr: idealização, utopia e crítica, dissertação de mestrado defendida em 2007 no departamento de literatura da UnB.


“Quem lê a poesia bem humorada de Nicolas desconhece que o poeta teve acesso a um conjunto de leituras que se tornaram o foco de indagação da minha pesquisa”, diz Gilda. Para entender de onde vinha a inspiração do autor, a pesquisadora pediu emprestados os primeiros escritos de Behr para analisar a composição dos textos originais. “Na segunda vez que voltei à casa do Nicolas, ele começou a falar da biblioteca dele”, conta. “Fiquei impressionada com a riqueza de material que falava de Brasília, sob vários pontos de vista”.


Nicolas Behr coleciona mais de 500 livros sobre a cidade. Em conversas com o poeta, Gilda percebeu a importância que os livros tinham para ele e selecionou 12 títulos do acervo do artista que falam de Brasília. “Ele começou a trocar informações comigo a respeito do material da biblioteca dele que eu estava lendo”, conta a pesquisadora. A partir daí, surgiram conversas sobre a relação que o poeta tinha com aquela literatura. “Ele pegava os livros e citava passagens. Ele bebe naqueles livros, ele lê aquilo tudo e é um profundo conhecedor da bibliografia sobre Brasília”, diz. “Eu percebia que ele estava muito bem articulado, ele tem uma articulação muito sustentada”, completa.


“Comecei um diálogo com Nicolas sobre a sua visão da construção de Brasília a partir desses livros. Ele ficou impressionado porque eu tinha tocado num ponto que era a chave do trabalho dele”, conta Gilda. “Eu estava conhecendo um segredo”.


A analogia com o conteúdo e a semelhança no vocabulário determinaram a escolha de seis textos como foco da pesquisa de Gilda: os de James Holston, Luis Sérgio Duarte da Silva, Brasilmar Nunes Ferreira, Lúcio Costa, Paulo Bertran e Clarice Lispector.


HOMEM DE FASES - 
De acordo com estudos de gênese da obra de Nicolas Behr, Gilda percebeu diferenças marcantes em três fases distintas. Para delimitar essas fases, a pesquisadora levou em consideração os maiores períodos de produção do autor e os textos em que Brasília é usada como suporte físico para desenvolver a linguagem poética.


1a. fase: 1977 a 1980

Nesta fase, Gilda analisou os livros Iogurte com farinha, Grande Circular e Brasiléia Desvairada. A pesquisadora considerou o Relatório do Plano Piloto de Brasília, de Lúcio Costa, como o texto estruturador dos versos do poeta neste período. “Ele idealizava o projeto de Lúcio Costa, mas ao mesmo tempo questionava a organização espacial da nova capital”, diz a pesquisadora. “Quando eu cheguei, a cidade era muito inóspita e isso me levou a uma situação extrema de desespero e de busca por um diálogo”, conta Behr.

Eu S
Tu Q
Ele S

Nós S
Vós Q
Eles N


Nesta fase, fica claro o olhar de deslumbramento que o poeta, então adolescente, tinha da “cidade-maquete”, como ele mesmo chama Brasília. Ao mesmo tempo, retrata a angústia de estar rodeado pelo concreto.


mapa na mão

olho no mapa
mão no olho
vamos tentar encontrar a cidade


2a. fase: 1993 a 1997

Em agosto de 1978, Nicolas Behr foi preso e processado pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), durante a Ditadura Militar, sob a alegação de que portava material pornográfico. Foi julgado e absolvido no ano seguinte. Até 1980, publicou ainda 10 livrinhos mimeografados, mas parou por aí. Só voltou a publicar em 1993, com o livro Porque Construí Braxília, uma referência ao texto de Juscelino Kubitscheck, Porque Construí Brasília, em que o ex-presidente explica as razões que o levaram a erguer a capital no interior do Brasil. Estão também nesta fase os livros Beijo de Hiena e Segredo secreto. Para Gilda, esse período mostra um poeta mais consciente, que fala da história da cidade com uma crítica social.


Duas influências significativas norteiam Nicolas Behr nesse período: A Cidade Modernista – Uma crítica de Brasília e sua utopia, de James Holston e História da Terra e do Homem no Planalto Central, de Paulo Bertran. O que antes o poeta escrevia baseado apenas em percepções, passa a ser embasado por leituras e referências teóricas sobre a capital. “Para o cérebro fazer associações inusitadas, ele tem que ter matéria-prima para trabalhar”, explica o poerta. “E essa matéria-prima é feita de leituras e vivências”, completa.


James Holston, em crítica ao projeto de Lúcio Costa, afirma que o traçado de Brasília “elimina esquinas e ruas da cidade, substituindo por balões e trevos, não havendo, portanto, cruzamentos que distribuem os direitos de passagem entre o pedestre e o carro”. A poesia de Behr pega carona nas críticas.

nossa senhora do cerrado,
protetora dos pedestres
que atravessam o eixão
às seis horas da tarde,
fazei com que eu chegue
são e salvo
na casa da noélia


Para fugir das contradições, Behr cria sua própria cidade, Braxília. A substituição do S pelo X remete ao traçado da cidade (o X simboliza o cruzamento dos eixos). Braxília é uma projeção do sonho do poeta para Brasília, uma utopia da cidade que só existe nos livros que escreve.


imagine Brasília 

não-capital 
não-poder 
não-brasília 
assim é Braxília


A Paulo Bertran, historiador com um extenso currículo de pesquisas sobre as raízes e a presença do sertanejo no Centro-Oeste, Nicolas Behr dedica uma poesia.


às vezes a poesia vem como um trator 

com correntão que sai rasgando tudo 
e depois vai ver o estrago que fez
poesia que vai levando 
toco, dor, árvore, 
loucura, cupinzeiro

pra paulo bertran


3a. fase: 2001 a 2004

A terceira fase fica concentrada no livro Braxília revisitada, em que a poesia de Nicolas Behr assume um tom ainda mais crítico. As influências do poeta são A construção de Brasília: modernidade e periferia, de Luiz Sérgio Duarte da Silva; Brasília: A fantasia corporificada, de Brasilmar Ferreira Nunes e as crônicas de Clarice Lispector sobre Brasília, do livro Para Não Esquecer.


O texto de Duarte da Silva diz que Brasília é “um espaço extraordinário (realizando simultaneamente proximidade, exclusão, isolamento, pluralidade e integração) que juntou tipos sociais (o civilizador, o herói, o profeta, o sonhador, o interessado, o fascinado, o instrumentalizado)”.


“A apropriação das idéias de Duarte da Silva traz para a terceira fase dos versos de Behr uma dimensão social e política que reforça a temática do isolamento e da solidão anunciada na fase anterior”, explica a pesquisadora, Gilda.


Brasilmar Nunes expressa o sentimento de afastamento que existia em Brasília: “É neste ponto que se pode apontar uma das críticas mais pertinentes ao projeto urbanístico: mais do que aproximar, afasta as pessoas, mesmo as de classes sociais mais simples”.


Nicolas Behr concorda com a sensação de isolamento de que os autores falam: os eixos se cruzam, mas as pessoas não. “A setorização foi rígida demais. Acho que as pessoas querem se misturar”, diz.


brasília nasceu

de um gesto primário
dois eixos se cruzando,
ou seja, o próprio sinal da cruz

como quem pede benção
ou perdão


Clarice Lispector veio a Brasília de passagem. O olhar de quem vem de fora rendeu uma série de crônicas sobre a cidade. A influência de Clarice Lispector na composição do poeta é percebida pela apropriação de algumas passagens do texto da escritora. Clarice escreveu: “Vou agora escrever uma coisa da maior importância: Brasília é o fracasso do mais espetacular sucesso do mundo. Brasília é uma estrela espatifada. Estou abismada. É linda e é nua. O despudoramento que se tem na solidão. {...} Aliás a época que estamos atravessando é fantástica, é azul e amarela, e escarlate e esmeralda”. Nicolas, usando o recurso da intertextualidade, revisitou o texto da escritora:


brasília é o fracasso 

mais bem planejado 
de todos os tempos

brasília é maquete 

modelo reduzido 
do nosso fracasso

a construção de brasília 
é a construção da palavra 

palavra espatifada 
sobre o chão do cerrado


POESIA MARGINAL - 
Nos anos 70, em meio a Ditadura Militar, surgiu um movimento de produção poética independente. Sem espaço para publicar livros nas editoras de grande porte, os poetas começaram a imprimir os textos em mimeógrafos. “A coisa mais revolucionária da poesia marginal é que ela acontecia ‘de costas’ para o mercado editorial e, portanto, de costas para a lógica capitalista”, explica a professora Cíntia Schwantes, do Departamento de Teorias Literárias e Literaturas da UnB.


Nicolas Behr foi parte da “Geração Mimeógrafo”, escrevendo “poesia marginal”. Marginal é o termo utilizado para descrever o movimento poético que estava à margem do mercado editorial da época. “No momento em que se faz uma historiografia da Geração Mimeógrado, Nicolas Behr está lá. E ele tem qualidade e estatura para estar lá”, diz Cíntia.


Para a professora, um poeta tem de dominar a técnica e a linguagem poética. “Além disso, ele tem de ter alguma coisa para dizer que interesse aos outros ouvir”, explica. “Nesse sentido, Nicolas Behr é um poeta”.


Elizabeth Hazin, orientadora de Gilda acredita que a relevância do estudo vem dos diálogos entre Gilda Furiati e Nicolas Behr. Ela explica que as conversas transformaram a relação da pesquisadora com o objeto de estudo no sentido de que o próprio objeto de estudo pode confirmar ou refutar as impressões da pesquisadora. “O trabalho crítico de Gilda amplia o trabalho de Nicolas”, afirma.


Behr garante que a pesquisa só veio a somar na poesia dele. “O trabalho da Gilda engrandeceu a minha visão poética, os meus horizontes poéticos”, afirma em tom brincalhão. E para quem acredita que Brasília é um tema que já se esgotou, Nicolas afirma: “Ainda não escrevi tudo sobre Brasília. Não há limite para a criação”.