Há 11 anos, Clara Roseane Mont’Alverne descobriu que sua filha Rebeca, à época com quase dois anos de idade, apresentava alguns comprometimentos em seu desenvolvimento. Entre eles, o bloqueio da linguagem simbólica, utilizada para fazer referências a determinadas coisas. A mãe Clara, professora da educação especial em Belém, no Pará, desconfiava que a questão ia além de uma dificuldade cognitiva.
Após encaminhar a criança para exames clínicos com psicólogos e neurologistas, veio o diagnóstico: a filha tem o Transtorno do Espectro Autista (TEA). Entre os sintomas apresentados por Rebeca, o mais impactante era o sono irregular. Foram mais de oito anos de noites mal dormidas, com curtos intervalos de descanso. A situação não só afetava a qualidade de vida da menina, como também a de sua mãe.
“Ela não dormia desde bebê. Toda mãe sabe que, até certa idade, as crianças acordam de duas em duas horas para mamar. Quando deu um ano, essa fase não acabou. Vi que tinha uma coisa irregular. Conforme ela foi crescendo, o tempo de sono à noite foi diminuindo”, relata Clara, que se viu muitas vezes à beira de um colapso.
Após tentativas, sem sucesso, do uso de remédios à base de melatonina, hormônio responsável pela regulação do sono, a professora encontrou uma alternativa para o tratamento da filha: a administração do extrato da planta Cannabis sativa – da qual é obtida a maconha – enriquecido com canabidiol (CBD), uma das 113 substâncias químicas encontradas na planta.
A efetividade terapêutica do composto em Rebeca e em outros pacientes com autismo foi atestada em uma pesquisa de pequena escala conduzida por cientistas do Departamento de Ciências Fisiológicas do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Brasília e médicos da Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal (Ama+me). Durante nove meses, eles acompanharam os efeitos do uso do extrato em 18 pacientes autistas, entre seis e 17 anos, vinculados à Associação. Entre os participantes, seis eram acometidos por crises epilépticas.
Do grupo de 18 pacientes, 14 (cerca de 78%) apresentaram melhoras nos principais sintomas relacionados ao autismo. “Os resultados mais impactantes foram a redução da hiperatividade, do déficit de atenção e das crises nervosas – as quais, muitas vezes, envolvem autoagressividade –, além de melhora na qualidade do sono e na interação social, o que permitiu para alguns ter ganhos cognitivos”, relata Renato Malcher-Lopes, neurocientista e um dos professores da UnB envolvidos no trabalho.
O estudo foi publicado em outubro na revista Frontiers in Neurology, periódico de acesso livre reconhecido mundialmente na área da Neurologia. Com pouco menos de dois meses de publicação, o artigo recebeu mais acessos que 90% dos papers já publicados pela editora – atualmente, são mais de 40 mil. Estados Unidos, Canadá e Brasil são os países que lideram as visualizações.
RELATOS POSITIVOS – Realizada entre 2016 e 2017, a pesquisa pautou-se nas impressões dos pais sobre a mudança no comportamento de seus filhos após a adoção da terapia. Eles foram convidados a preencher mensalmente formulário no qual estimavam a porcentagem de melhora em oito categorias de sintomas do transtorno: hiperatividade e déficit de atenção, transtornos comportamentais, déficit motor, déficit de autonomia, déficit de comunicação e interação social, problemas cognitivos, distúrbio do sono e convulsões.
Nove pacientes tiveram impactos positivos de mais de 30% em ao menos um traço do transtorno, enquanto seis apresentaram o mesmo percentual de melhora em duas categorias ou mais. Resultados mais promissores foram vistos em usuários do extrato acometidos pela epilepsia.
Todos os pacientes receberam a mesma composição, importada dos Estados Unidos com autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O extrato continha proporção de 75 partes de canabidiol (CBD) para uma de delta-9-tetrahidrocanabinol, o THC, outra substância encontrada na planta Cannabis sativa. O CBD já é referenciado em diversos estudos por sua ação terapêutica. O THC, por sua vez, é o principal componente psicoativo da maconha. Entretanto, a pesquisa identificou que a combinação das duas substâncias trouxe importantes benefícios para os usuários.
Além do avanço no tratamento do transtorno, Renato Malcher-Lopes aponta que grande parte dos participantes conseguiu reduzir ou até eliminar o uso de outros medicamentos para controle dos sintomas com bons resultados. Na jovem Rebeca Mont’Alverne, hoje com 13 anos de idade, o uso de dosagem 50% menor do que a geralmente recomendada pelos médicos foi suficiente para reequilibrar o seu sono.
“Uma pessoa que fica sem dormir não tem condições de aproveitar absolutamente nada. Depois do tratamento, ela teve melhoras na prontidão para as terapias, na fala, na interação, na organização, na prática da fisioterapia, na execução das atividades físicas e escolares, na compreensão do meio ambiente e no lazer”, menciona a mãe, Clara, feliz em também recuperar suas noites de descanso.
Anteriormente ao tratamento, além dos distúrbios no sono, outros danos causados pelo transtorno tornavam a situação de Rebeca ainda mais delicada e agravaram-se com o passar do tempo. “Minha filha sofria com desorganização sensorial, o que a impedia de se colocar em pé, e com uma sensibilidade menor à dor”, compartilha Clara. Hoje, ela reconhece os avanços alcançados pela filha após o consumo do extrato. “Não troco o uso do óleo por nenhum outro remédio psicotrópico para o autismo”, afirma.
INTERAÇÃO – Há mais de uma década envolvido em pesquisas sobre o tema, Renato Malcher-Lopes salienta que os resultados corroboram com a hipótese de que as causas para os sintomas do autismo seriam similares às da epilepsia. O pesquisador afirma que elas estariam relacionadas ao excesso de atividade neuronal e que o extrato da Cannabis atuaria na redução dessa atividade. Segundo ele, já é conhecido há mais de um século o potencial da planta no tratamento da epilepsia severa, uma das condições que podem afetar pessoas com autismo.
Devido a questões legais, as abordagens científicas sobre o assunto só avançaram na década de 1990. Uma das grandes descobertas do período foi a existência, no organismo humano, do sistema endocanabinoide, que se utiliza de substâncias produzidas pelo corpo para regulação da saúde, emoções e reações ao ambiente externo. Esses são aspectos afetados em pessoas com o Transtorno do Espectro Autista.
Renato Malcher-Lopes afirma que as substâncias encontradas no sistema endocanabinoide do ser humano são similares aos canabinoides, o que explicaria a eficácia dos medicamentos à base da planta Cannabis no tratamento do autismo. “Acreditamos que a melhora que observamos nos pacientes vem do fato de que o sistema endocanabinoide atua, entre outras coisas, controlando as sinapses no cérebro evitando que elas fiquem super ativadas. É interagindo com o sistema que os canabinoides funcionam para o autismo."
O neurocientista, que também é pai de uma criança autista, acredita que a pesquisa dá um passo importante para alavancar outras investigações científicas sobre o uso medicinal do extrato da Cannabis não só para o autismo, mas para outras questões de saúde. Entre elas, a melhoria da qualidade de vida dos idosos e de pacientes com distúrbios do sono. Uma de suas pesquisas mais recentes, financiada pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAP-DF), investiga a ação do composto no tratamento de dependentes do crack.
O professor defende o pioneirismo da UnB ao estimular pesquisas na área: “Só conseguimos esse tipo de projeto porque a Universidade permitiu essa conexão com a comunidade, valorizou a ciência e o impacto que o estudo tem na sociedade, a despeito de todo o preconceito que existe sobre o tema".
USO AUTORIZADO – Para o pesquisador, o trabalho também aponta perspectivas positivas para que o país ultrapasse a barreira do preconceito e avance na discussão sobre o assunto, sobretudo com a recente regulamentação pela Anvisa do comércio de medicamentos à base de Cannabis nas farmácias. Anteriormente à medida, pacientes que demandavam o tratamento com canabinoides necessitavam da autorização do órgão para importar o extrato para fins medicinais.
Buscar garantir a esses sujeitos o direito de acessar os medicamentos à base da substância é tarefa da Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal (Ama-me) desde 2013. Atualmente, quatro médicos e 50 pacientes autistas, além de pessoas em tratamento de outras doenças, como Alzheimer, Parkinson, epilepsia, dores crônicas e câncer, estão vinculados à entidade.
“Contribuímos efetivamente para que a regulamentação da Cannabis como tratamento no Brasil seja justa e inclusiva e para que, junto com outros pacientes e coletivos de pacientes, possamos produzir Cannabis para fins medicinais, com adequado controle de qualidade e baixo custo, democratizando, assim, o acesso ao tratamento canábico”, defende a vice-presidente da Ama+me, Juliana Paolinelli.
Apesar de considerar a decisão da Anvisa uma conquista por reconhecer as vantagens do produto em detrimento de outros medicamentos recomendados, porém, ineficazes, Renato Malcher-Lopes pondera que ainda é necessário democratizar o acesso à alternativa. “O problema que permanece é o fato de não haver uma regulamentação para que esses medicamentos sejam produzidos no Brasil, o que reduziria os preços e aumentaria o leque de possibilidades para médicos e pacientes”, lembra o professor, sobre o fato de hoje os produtos comercializados serem todos importados.