Ao definir protocolos de criopreservação para felinos da fauna brasileira em risco de extinção, estudo de aluna da UnB é um dos pioneiros em todo o mundo

Foto: Luis Gustavo Prado/Secom UnB

Mais de 20 anos se passaram desde a clonagem da ovelha Dolly, concebida a partir do núcleo da célula de outra ovelha de seis anos de idade. Dolly também morreu com seis anos e meio de idade, o que foi considerado precoce para uma raça que vive em média nove anos. No entanto, ainda há muito o que avançar para que a técnica possa ser adotada para diferentes espécies de animais. Segundo a bióloga Letícia Gobbi Arantes, que concluiu o mestrado no ano passado pelo Programa de Pós-Graduação em Biologia Animal (PPG BioAni), para o sucesso da clonagem, é necessário que o congelamento de células seja feito de forma eficiente e é preciso conhecer bem o funcionamento celular de cada espécie para obter resultados satisfatórios. E esse foi um dos objetivos da pesquisa desenvolvida por ela na dissertação Efeitos da criopreservação na viabilidade de fibroblastos de felinos silvestres.

 

Devido à sua experiência profissional e atuação prévia no Jardim Zoológico de Brasília, Letícia Gobbi sempre se preocupou com a preservação da fauna silvestre. A familiaridade com os felinos fez com que ela selecionasse três espécies para sua pesquisa: a onça-preta (Panthera onca), o gato-do-mato (Leopardus tigrinus) e o gato-palheiro (Leopardus colocolo). Eles estão entre os animais mais ameaçados de extinção em todo o mundo.

 

Estima-se que a população desses mamíferos possa reduzir em pelo menos 10% nas duas próximas décadas, de acordo com informações divulgadas no portal do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente (MMA). “É difícil contabilizar os animais silvestres, pois é preciso identificá-los a partir de seus rastros, como pegadas ou fezes”, argumenta Letícia.

 

“A maioria hoje vive em unidades de conservação e no que restou do Cerrado no território brasileiro. O gato-do-mato e o gato-palheiro são espécies endêmicas, mas a onça também pode ser encontrada na Floresta Amazônica e no Pantanal”, aponta. A ocupação humana desordenada tem ocasionado muitas mortes, por atropelamentos, queimadas ou perda de habitat. Esta última é causada especialmente pela expansão agrícola.

Professora Sônia Báo orientou trabalho inédito com felinos silvestres. Foto: Audrey Luiza/Secom UnB

 

Para a orientadora do estudo, professora Sônia Nair Báo, a preservação dos animais é fundamental para o equilíbrio do sistema e das funções ecológicas do planeta. “Estamos falando de animais em risco de extinção total. Portanto, a partir da genética dessas espécies e utilizando metodologias de conservação e cultivo das células, é viável a obtenção de indivíduos por meio da transferência nuclear”, garante, ao falar da clonagem.

 

CRIOPRESERVAÇÃO – À primeira vista, o nome pode até ser complicado, mas a criopreservação nada mais é do que a técnica de congelar material genético para ser utilizado no futuro. O procedimento já é comum na medicina moderna, sobretudo na reprodução humana para o congelamento de óvulos e espermatozoides.

 

“Crio significa congelar, quando a temperatura cai para 196 graus negativos para manter aquele material guardado pelo tempo que precisar, sendo necessário apenas repor o nitrogênio enquanto ele estiver armazenado”, explica Letícia Gobbi. Assim, com a célula preservada, é possível dar origem a um novo ser vivo.

 

Mas antes de clonar propriamente, é preciso conhecer bem as células, seu funcionamento e componentes. “Eu escolhi estudar o tipo fibroblasto, que são as principais células do tecido conjuntivo, como cartilagem e pele”, exemplifica.

Fibroblasto de gato-do-mato, visto pelo microscópio de varredura. Imagem: Letícia Gobbi/Laboratório de Microscopia Eletrônica (IB)

 

A bióloga esclarece que é fácil adquirir fibroblastos para a amostra, pois é necessária apenas uma pequena parte do organismo. “Posso utilizar um pedacinho da pele da cauda do felino ou da orelha, sem necessidade de uma amostra muito grande”, assegura.

 

A partir desse material, isola-se a célula para conhecer suas características, como o tempo que ela demora para crescer e o quanto de “alimento” precisa para o cultivo. “O alimento, nesse caso, são as substâncias para simular o meio interno de um organismo”, explica a pesquisadora.

 

“Ao longo de oito dias, por exemplo, identifiquei que já se tem um quantitativo de células muito bom para trabalhar”, conta. Outra descoberta é que alguns dos animais podem ser preservados com quantitativo de crioprotetor (substância utilizada para proteger as células no momento do resfriamento) menor do que outros. “Trata-se de economia de material e também de benefício para a própria célula, que sofrerá menos intervenções”, defende. 

 

PROPOSTA INOVADORA – Embora inicial, a pesquisa abre espaço para um campo até então pouco explorado no país. “É o primeiro trabalho com células de felinos silvestres aqui no Brasil, sendo encontrados registros de estudos apenas com o cervo-do-pantanal”, indica.

 

Em escala mundial também há poucos experimentos nesse sentido publicados em revistas científicas. “Na China já são feitos estudos com tigre siberiano e pandas”, relata. Mas Letícia afirma que os trabalhos são iniciais, voltados para o cultivo da célula e a técnica de congelamento. 

 

Quanto à clonagem, ela só identificou pesquisas com resultados malsucedidos. “A maioria ainda não chegou a clonar esses animais, mas as que fizeram não deram certo porque não se conhecia bem a célula”, acredita. A técnica, no entanto, já é bastante conhecida e realizada no Brasil em bovinos para melhoramento genético.

A análise celular foi desenvolvida no Laboratório de Microscopia Eletrônico, do Instituto de Ciências Biológicas (IB). Foto: Audrey Luiza/Secom UnB

 

Para definir os protocolos técnicos de criopreservação, Letícia partiu dos padrões de seres humanos e de bovinos. “Como ambos já estão bem avançados, adaptamos para os animais silvestres”, explica. Um protocolo adequado aumenta a chance de sucesso no cultivo celular, podendo ser empregado em vários lugares do mundo.

 

“Nós vimos, por exemplo, que o bovino usa 10% de uma solução, enquanto os animais que pesquisei poderiam usar 2,5% e teriam a mesma eficácia”, elucida. Se o cultivo é feito errado, ao descongelar a célula para uma possível clonagem pode-se perder o material genético.

 

Segundo a pesquisadora, há instituições, como os zoológicos de Brasília e de São Paulo, que já possuem banco genético de alguns animais. Esse seria um importante passo para a troca de material, necessária e fundamental para não limitar o boom genético. “Se há uma onça-macho e uma fêmea que têm grau de parentesco muito próximo, não posso colocá-las para cruzarem. Mas poderia trocar com outras instituições e até mesmo com diferentes países”, detalha.

 

Letícia Gobbi acredita que seu estudo poderá ser facilmente replicado. Foto: Audrey Luíza/Secom UnB

INTEGRAÇÃO – Realizado em parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o trabalho foi coorientado pelo pesquisador Carlos Frederico Martins. “Na Embrapa foi onde realizei a maior parte do estudo, do congelamento do fibroblasto ao crescimento e acompanhamento desse material”, destaca. Para as amostras, houve apoio do Jardim Zoológico de Brasília. 


Na UnB, foi realizada a microscopia para conhecer as células por dentro. A bióloga contou com auxílio do estudante Guilherme Tonelli, bolsista do Programa de Iniciação Científica (Pibic), que atua no laboratório de Microscopia Eletrônica do IB. Ele ajudou na análise e na interpretação de algumas das imagens microscópicas.

 

“É interessante porque foi o primeiro trabalho com microscopia eletrônica nesse tipo de amostra”, lembra Guilherme. Para o graduando em Ciências Biológicas, a experiência foi uma oportunidade de se inserir mais no mundo da pós-graduação. “Foi possível compreender melhor o método científico e conhecer as pessoas e as linhas de pesquisa do programa”, pontua.

 

Atualmente, Letícia aguarda a avaliação de periódicos científicos para que seu protocolo seja conhecido por toda a comunidade acadêmica. A expectativa é dar prosseguimento ao estudo no doutorado. “Se tenho o protocolo, o próximo passo é partir para a transferência nuclear ou a clonagem”, planeja a bióloga.

 

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