O glóbulo vermelho, chamado também de hemácia ou eritrócito, é uma célula sanguínea que tem como função essencial transportar o oxigênio às demais células do organismo para que o corpo funcione bem e corretamente. O oxigênio é fixado no glóbulo vermelho por meio da hemoglobina (pigmento que dá a cor característica do sangue), a qual é composta por proteínas e ferro.
Quando, por alguma deficiência, o número de hemácias é insuficiente para satisfazer as necessidades fisiológicas do corpo, a capacidade de transporte de oxigênio também é afetada e o organismo como um todo sente. Clinicamente, esta é a condição de anemia, que, no caso de gestantes no Brasil, segue como uma situação preocupante.
Em 2015, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou os resultados de dados coletados em 2011 que apontavam a prevalência de anemia em 32% das grávidas brasileiras. A taxa se enquadra na segunda classificação mais alta do órgão – que passa de “moderada” para “severa” quando a prevalência de anemia é de 40% ou superior.
O que se notou de lá para cá, porém, foi um lapso na publicação de dados nacionais a respeito do tema e a escassez de estudos representativos para o Brasil. Esses foram os principais motivadores para a então mestranda do Programa de Pós-Graduação em Nutrição Humana (PPGNH) da Universidade de Brasília Amanda Biete desenvolver seu estudo.
A pesquisadora debruçou-se sobre a literatura dispersa que havia sobre o assunto no país e conduziu uma revisão sistemática sobre o assunto com metanálise, método estatístico que agrega os resultados de dois ou mais estudos independentes, sobre uma mesma pergunta de pesquisa, combinando seus resultados em uma única medida, neste caso, a prevalência.
O estudo analisou trabalhos publicados entre 1974 e 2021, e contemplou todas as regiões do país. A amostra considerou 12.792 grávidas, nos três trimestres gestacionais, com idades entre 10 e 49 anos. A partir dos dados, a pesquisadora concluiu que a prevalência de anemia entre gestantes brasileiras é de 23%.
Os resultados foram publicados na revista de alto impacto International Journal of Enviroment Reasearch and Public Health, em artigo sob The Prevalence of Nutritional Anaemia in Brazilian Pregnant Women: A Systematic Review and Meta-Analysis (A Prevalência de Anemia Nutricional em Gestantes Brasileiras: uma revisão sistemática e metanálise, em tradução livre para o português).
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Ainda que a metodologia adotada seja diferente da utilizada pela OMS, vale ressaltar que o número de grávidas com anemia no Brasil é menor em 2023. Porém, o novo dado permanece na segunda classificação mais alta daquele órgão e continua a ser um problema moderado de saúde pública nacional.
“Aqui no Brasil, temos algumas políticas para reduzir a anemia em gestantes (fortificação das farinhas de milho e de trigo, suplementação de ferro), e então, queríamos ver se tinha diferença antes ou depois desses marcos. E os estudos avaliados na revisão sistemática não mostraram diferença significativa”, revela Amanda.
A inadequação do consumo de ferro pode ser uma justificativa para os dados encontrados. De acordo com a última Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE, de 2018, 20% dos jovens entre 10 e 18 anos de idade consomem menos ferro do que deveriam. Entre mulheres adultas esse número chega a 30%.
“Vemos uma tendência de modificação no padrão da alimentação: os brasileiros estão consumindo menos alimentos in natura e mais alimentos ultraprocessados, que têm muita energia, mas são pobres em nutrientes, entre eles o ferro. Essa transição nutricional pode ser uma das justificativas para o fato de ainda haver anemia nas gestantes, mesmo com as políticas de suplementação de ferro e de ácido fólico nas farinhas”, complementa a orientadora de Amanda, professora Nathalia Pizato, do PPGNH. Ela também assina o trabalho e participa de uma segunda pesquisa do grupo dedicada exatamente a investigar o consumo alimentar das gestantes no DF.
O ácido fólico é recomendado a todas as mulheres desde o início da gravidez para evitar o conjunto de más-formações que podem ocorrer no tubo neural do bebê. Segundo outra coautora do artigo, professora Vivian Gonçalves, do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (PPGSC/UnB), há estudos que mostram a importância dessa política para diminuir más-formações do tubo neural no Brasil ao longo do tempo, mas em relação à suplementação de ferro, havia mesmo uma lacuna de evidências.
“Não tínhamos esse dado e não se sabia de fato se a política estava surtindo algum efeito, principalmente na própria prevalência de anemia nas gestantes. Nesse sentido, o estudo da Amanda se encaixa”, destaca Vivian Gonçalves.
“Traz, neste momento, um panorama do Brasil que não existia de uma maneira tão detalhada como ela trouxe. Ela investigou todos os estudos que havia em cada região no país, conseguiu ver como isso se modificou ao longo do tempo, e viu que não se modificou com o tempo de forma significativa. Talvez agora tenhamos de fato um dado brasileiro para continuarmos acompanhando, com a metodologia que adotamos”, avalia a docente do PPGSC.
ANEMIA EM GESTANTES – A Organização Mundial de Saúde preconiza que gestantes com nível de hemoglobina menor que 11 g/dL têm anemia. Essa condição é bastante comum nesse público porque, quando grávidas, as mulheres têm excesso de líquido circulando no organismo (devido, por exemplo, à produção do sangue do bebê e do líquido placentário), apresentando, assim, a hemodiluição. Tecnicamente, é o desequilíbrio entre o volume de plasma e o volume eritrocitário.
Durante a gestação, todo o suprimento de ferro para o bebê é fornecido pela mãe. Por isso, nesta fase da vida, a mulher gestante precisa mais de ferro. Para se ter uma ideia, uma mulher não gestante com idade entre 18 e 30 anos, em média, precisa de 18 mg de ferro por dia; já a gestante precisa da ingestão de 27 mg diários.
O artigo científico explica que a anemia materna pode ocorrer devido a vários fatores, como infecções agudas, inflamação crônica e deficiências únicas ou combinadas de nutrientes como ácido fólico, vitamina B12 e deficiência de ferro, sendo este último o mais comum.
A chamada anemia ferropriva é considerada um dos principais contribuintes para a morbidade e mortalidade materna e fetal, especialmente em países de baixa e média renda, e pode ter consequências como aumento do risco de parto prematuro, baixo peso ao nascer e morte infantil. Além disso, a deficiência de ferro fetal-neonatal pode causar uma diminuição na memória de reconhecimento auditivo em lactentes.
PREVENÇÃO E TRATAMENTO – Para prevenir e tratar a anemia em gestantes, e assim também reduzir a prevalência, Amanda Biete ressalta que é preciso se atentar a três pilares: diversificação alimentar, suplementação profilática e fortificação alimentar.
“O profissional de saúde tem que orientar a gestante a consumir os alimentos fontes de ferro heme ou não heme [variam quanto à origem animal ou vegetal e animal, respectivamente], apoiar a gestante, falar das fontes de alimentos ricos em ácido fólico também, além de prescrever a suplementação de ferro de acordo com as orientações do Ministério da Saúde. Já a regulamentação da fortificação dos alimentos fica por conta da Anvisa", pontua.
“Além disso, é necessária a avaliação constante das ações de saúde pública para o enfrentamento das causas da anemia materna no Brasil”, conclui Nathalia Pizato. A pesquisadora Vivian Gonçalves complementa: “Esses resultados podem ser utilizados para informar políticas públicas, tornando-as mais efetivas na mitigação dos danos à saúde e no combate à anemia no grupo materno”.
PUBLICAÇÃO – Amanda Biete conduziu a pesquisa em coautoria com a docente do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (PPGSC/UnB) Vivian Gonçalves, os pesquisadores Eduardo Nilson (Universidade de São Paulo e Fiocruz) e Sylvia Franceschini (Universidade Federal de Viçosa), além de sua orientadora no PPGNH, professora Nathalia Pizato – todos com ampla experiência e publicações científicas no tema saúde e saúde materno-infantil.
A International Journal of Enviroment Reasearch and Public Health é uma revista de alto impacto, Qualis A1 para a área de Nutrição pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Confira breve comentário das pesquisadoras da UnB sobre o estudo: