Vencedora de honraria da Sober, pesquisa desenvolvida na UnB aborda programas estaduais de aquisição de alimentos da agricultura familiar. Estudo também foi reconhecido na Universidade

Divulgação/Cegafi

 

Desmonte de políticas públicas voltadas à agricultura familiar, redução dos recursos orçamentários federais destinados ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), extinção de órgãos e ministérios ligados à manutenção da segurança alimentar. Segundo o egresso de mestrado da UnB Rafael Cabral, esse cenário, visto no Brasil nos últimos anos, resultou na volta do país ao Mapa da Fome.

Na contramão deste movimento, o pesquisador identificou a necessidade de avaliar as políticas e programas mantidos nesta temática, mas com um novo olhar: a esfera estadual. Este foi o foco da dissertação de Rafael, intitulada Ideias e atores sociais: os programas estaduais de aquisição de alimentos da agricultura familiar.

>> Leia a dissertação na íntegra

O trabalho, desenvolvido durante a pandemia e defendido em 2021, no Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural (PPGMADER), acompanhou o crescimento do número de programas subnacionais. O intuito era entender quais estados instituíram políticas e o papel dos atores sociais nessas experiências.

Em 2022, a dissertação ganhou o Prêmio Sober de Mestrado em Sociologia, durante o 60º Congresso da Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural (Sober), realizado em agosto, em Natal. A pesquisa também saiu vitoriosa do Prêmio UnB de Pós-Graduação, na área Multidisciplinar, em dezembro daquele ano.

“Minha dissertação ser premiada duas vezes foi uma grande e feliz surpresa. Acho que a grande diferença do meu trabalho foi esse olhar para as experiências estaduais, que não tinham muitas referências e atendem a demandas específicas de grupo locais”, comenta Rafael.

Ele acredita que a “pesquisa atingiu o propósito de causar impacto social ao debater um tema novo, que dá visibilidade a ações regionais tão importantes”.

Rafael e seu orientador Mário Ávila, professor do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural da Faculdade UnB Planaltina (FUP), também submeteram artigos acadêmicos, com o mesmo tema da dissertação, ao 44º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), ao 58º e 60º Congresso da Sober e ao 9º Encontro da Rede de Estudos Rurais.


>> Assista à defesa da dissertação


PESQUISA DE EXCELÊNCIA – 
Formado em Economia e servidor público de carreira, Rafael sentiu a necessidade de se especializar após anos trabalhando com a temática no Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar.

Os envolvidos na pesquisa: o orientador Mário Ávila e o pesquisador Rafael Cabral. Fotos: Divulgação/Cegafi e arquivo pessoal


“Eu senti que era hora de unir vivência e formação acadêmica. Ingressei [no mestrado] com um projeto para educação alimentar indígena, mas como precisava conciliar a pesquisa com meu emprego, ingressei no tema das políticas estaduais”, explica o egresso.

“Nossa ideia era estudar a esfera federal, mas com o desgoverno da gestão Bolsonaro, mudamos o olhar para quem estava fazendo esse trabalho nos estados e municípios”, complementa o orientador.

Por meio da abordagem qualitativa, utilizando entrevistas com os envolvidos na criação ou implementação dos programas e análise de documentos oficiais, Rafael conseguiu analisar as iniciativas de comercialização de produtos da agricultura familiar instituídas pelos governos estaduais nos últimos anos.

A dissertação dá ênfase aos atores sociais presentes no processo de discussão, construção e institucionalização das políticas públicas. Foram mais de 30 entrevistas virtuais com lideranças, gestores e demais envolvidos nessas iniciativas que ajudaram a compreender como eles se organizaram localmente para que houvesse a manutenção da segurança alimentar nos estados.

"Para entender o processo de formulação dos programas e políticas, entrevistei agentes em todos os estados onde elas existiam, usando como pano de fundo a ligação desses programas com o desmonte das políticas federais”, pontua Rafael.

“De fato, está mais do que provado que quem garante dinheiro circulando nos municípios, a segurança alimentar e a comida para a gente é a agricultura familiar”, destaca Mário Ávila. “O agronegócio é importante para a balança comercial e para as exportações. Mas, para o dia a dia do cidadão, é a política da agricultura familiar que faz essa função”, salienta o professor.

Mário cita o Programa Estadual de Compras Governamentais da Agricultura Familiar e Economia Solidária (Pecafes), instituído em 2019, no Rio Grande do Norte, como exemplo de estratégia bem sucedida em que o estado assume a função complementar de apoio à agricultura familiar.

“Esse estado tem uma agenda e uma contribuição muito grande para a agricultura familiar. Tem sido o estado que mais tem criado inovações na área”, explica.

Rafael detalha que a escolha de aprofundar o estudo na experiência potiguar se deu por outros fatores, como o maior número de modalidades de operacionalização do Pecafes, apoio à produção orgânica e agroecológica, beneficiários diversificados, participação de movimentos sociais e o fomento à participação de mulheres.

A pesquisa também traça o histórico da atuação governamental na esfera federal nos últimos 20 anos, citando a criação do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Além disso, mapeou o conjunto de programas estaduais instituídos que estão ou não em funcionamento, bem como características específicas de produção, governança e participação feminina.

A dissertação ainda cita as fontes de recursos de cada projeto ou programa, parcerias, os elementos dos processos de construção das iniciativas em funcionamento e os atores sociais envolvidos.

A Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte aprovou o Pecafes, que estimula, por meio de compras governamentais, o desenvolvimento rural e a produção sustentável. Foto: Divulgação

 

Como desdobramento e inspiração, Rafael cita além do Pecafes, outra experiência que pode servir de insight para novas pesquisas: o Programa Paulista da Agricultura de Interesse Social (Ppais).


No exemplo paulista, após constituído, o programa estadual foi adotado em vários municípios, com diferentes partidos políticos na gestão. Algo semelhante ocorreu com o programa potiguar, replicado no município de Guamaré (RN) e que serviu de inspiração para os estados de Pernambuco, Goiás, Mato Grosso e Paraíba. “Ambas as iniciativas possuem fluxo de ideias que se expandem para outros territórios e podem servir de base para um aprofundamento no futuro”, pontua Rafael.

Como resultado, a dissertação identificou algumas das principais dificuldades enfrentadas e similaridades com os programas nacionais. Ela ainda ajuda a propor soluções para aprimorar a execução das políticas estaduais, como a criação de sistemas de gestão mais eficientes, a realização de capacitações e o estabelecimento de parcerias entre os diferentes envolvidos na cadeia produtiva.

APOIO – Durante a escrita da dissertação, além de encarar o desafio de se aprofundar em um tema tão complexo e os problemas normais de uma pesquisa de mestrado, como prazos e revisões, Rafael revela que perdeu o pai e a irmã, vítimas da covid-19, em um curto espaço de tempo, o que quase o fez desistir do trabalho.

“Se não fosse todo o suporte que recebi do meu coordenador e de alguns outros professores da UnB, não teria permanecido. Mas ainda bem que eu encerrei esse ciclo num momento tão simbólico, com a recriação do Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional] e de políticas alimentares que favorecem a agricultura familiar”, pondera Rafael, primeiro de sua turma a apresentar defesa.

Agora, ele segue aluno da UnB, onde realiza o doutorado em Desenvolvimento Sustentável, em continuidade ao tema do mestrado.

FOME EM FOCO – Especialista em agroecologia e agricultura familiar e também coordenador do Centro de Gestão e Inovação da Agricultura Familiar (Cegafi-UnB), o professor Mário Ávila é um dos entrevistados na próxima edição da revista Darcy, que trará dossiê sobre a fome no Brasil. A publicação será lançada em evento no dia 24 de abril, às 14h, no Memorial Darcy Ribeiro (Beijódromo).

Em reportagem especial, Mário Ávila e outros dois pesquisadores comentam o impacto dos projetos Tipologia da Inclusão Produtiva Rural (TIPR) e Dom Helder Câmara (PDHC), ambos voltados à produção sustentável. As iniciativas são apontadas como referência na promoção da inclusão produtiva rural e da segurança alimentar, num país onde mais de 33 milhões de pessoas passam fome.

Estas não são as únicas contribuições da Universidade no tema. A UnB tem assumido protagonismo em pesquisas e ações relacionadas à consolidação da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), combate à fome no mundoinsegurança alimentar na pandemia, além de promoção da agricultura ecológica e sustentável, alternativas para a produção agropecuária e desenvolvimento sustentável.

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