O Brasil é o quarto maior consumidor de remédios do mundo. Uma indústria que movimenta cerca de R$ 40 bilhões por ano no país, faz capas de revistas e influencia pesquisas. Para o pesquisador e professor da Universidade de Brasília, Volnei Garrafa, esses números escondem práticas antiéticas. “A indústria farmacêutica influencia até mesmo a Organização Mundial da Saúde”, diz.
Ele cita o caso de pesquisas americanas feitas na Guatemala entre 1946 e 1948, que infectaram intencionalmente um grupo de 696 cidadãos com gonorreia e sífilis para a realização de estudo sobre a eficácia de medicamentos. Em outubro do ano passado, a secretária de Estado norte-americana Hillary Clinton desculpou-se pelo ocorrido.
“É preciso mais do que desculpas. Esses crimes precisam ser julgados e os criminosos, punidos”, considera Volnei. Para ele é preciso uma mudança nas práticas de pesquisa, refutando a comercialização de pesquisas clínicas e o conflito de interesses entre laboratórios e política. Volnei atacou a prática de duplo padrão para pesquisas clínicas. “Hoje essa prática é aceita pela Associação Médica Mundial, o que é um absurdo”, diz. O duplo padrão é um tratamento diferenciado entre países, que estimula testes de medicamentos em estados não desenvolvidos. “Certos testes feitos nesses países nunca seriam admitidos em países desenvolvidos”, explica Volnei.
O discurso, inflamado e em tom de denúncia, aconteceu durante a primeira mesa de palestras do 2º dia do IX Congresso Brasileiro de Bioética. Estiveram presentes Soren Holm, professor da Universidade de Manchester e Susana Maria Vidal Suarez, do Programa de Bioética e Ética da Ciência para América Latina e Caribe da UNESCO.
Eles lembraram a evolução e as contradições do campo desde a reunião do 6º Congresso Mundial de Bioética, que aconteceu em Brasília, em 2002. Segundo os palestrantes, apesar dos avanços na incorporação de aspectos sociais, sanitários e ambientais às pesquisas da área, a bioética ainda é um campo heterogêneo e carece de normas e práticas que levem em conta as diferenças globais. “O principal problema para uma normatização global é político”, disse Soren Holm.
Volnei defendeu que os pesquisadores latino-americanos voltem seus olhares para os problemas do continente. Ele afirma que as crises econômicas e políticas do mundo nesses dez anos exigem uma visão mais humana e de cooperação internacional. “Queremos uma bioética transformadora e não só acadêmica”, disse.
HISTÓRICO - Soren Holm traçou um panorama das mudanças que o conceito de bioética sofreu nesses dez anos. Apontou que dois campos, o da bioética clínica e o da saúde pública, foram os que mais evoluíram. Mas o desenvolvimento esbarra em problemas. Primeiro, existem as diferenças da linguagem, que levam pesquisas em outras línguas que não seja o inglês a serem descartadas. Outro é a intensa especialização das pesquisas, que leva à pulverização das discussões.
Suzana Vidal lembrou a evolução da Bioética latino-americana desde 2002. Nesses dez anos, o mercado biotecnológico e o crescimento das pesquisas não acompanhou o desenvolvimento social. “Estamos em um momento de recriação, em que existe um paradoxo entre a inovação tecnológica e as realidades socioambientais”, diz. Ela aponta que há grande heterogeneidade entre os países da América latina, tanto no campo da pesquisa como no campo normativo. “É preciso criar mais comitês nacionais de ética clínica”, diz.
Volnei Garrafa lembrou da demora na aprovação da lei 6.032 de 2005, que está para votação na Câmara dos Deputados. “O congresso é lento e incompetente”, disse. Ele explica que a lei, proposta pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva, está em regime de urgência no Congresso há três anos. “No momento que foi mandada, tanto o governo quanto oposição estavam prontos para discuti-la”, lembrou. Entretanto, a votação emperra na designação de deputados de dois partidos para a comissão. “O DEM e o PSDB são os únicos partidos que ainda não indicaram seus nomes”, afirmou Garrafa.