Setenta e seis por cento dos jovens que estão envolvidos em relacionamentos amorosos já praticaram ou foram vítimas de algum tipo de violência por parte de seus companheiros ou companheiras, aponta um estudo da Fundação Oswaldo Cruz. A alta prevalência da problemática se soma ainda a outro dado preocupante: somente 5% dos adolescentes buscam ajuda para lidar com a situação. As dificuldades em reconhecer os abusos e a falta de apoio de pessoas próximas para o enfrentamento mostram que o assunto é ainda pouco discutido por esse público, aspecto que pode contribuir para que desfechos similares voltem a ocorrer em futuras relações conjugais.
“As pessoas consideram que o que acontece em relacionamentos amorosos alheios é algo privado, particular, que elas não devem intervir. Mas, em muitos casos de violência, se não houver intervenção, as consequências podem ser fatais”, avalia a psicóloga e pesquisadora Karine Brito dos Santos. Para ela, as redes de amizades têm papel fundamental para prevenir a ocorrência de novos casos e de reincidência, tendo em vista que grande parte das experiências afetivas são compartilhadas e discutidas entre amigos.
Diante dessa perspectiva, em sua tese defendida no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília, a pesquisadora desenvolveu um modelo inédito de intervenção, com o intuito de estimular relações saudáveis a partir de fatores de proteção que possam neutralizar os efeitos da violência entre namorados. A pesquisa foi orientada pela professora Sheila Giardini Murta.
O procedimento foi construído com base em estratégias para mudança de conhecimento, atitudes e comportamentos desse público. Testes foram realizados para implementar e avaliar a eficácia da intervenção, empregada pela primeira vez no Brasil com essa finalidade. “Eu percebi que os adolescentes concebiam a violência de casais apenas em relação aos cônjuges. E me perguntava: e o namoro? Eles não falavam sobre isso”, comenta a doutora e atualmente professora do curso de Psicologia do Centro Universitário Dinâmica das Cataratas (UDC) e do curso de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), sobre o que a motivou a se aprofundar no tema.
Em 2008, a pesquisadora participou como instrutora voluntária do projeto social Jovens pela Não Violência, voltado para adolescentes de baixa renda de Foz do Iguaçu, realizado por meio da parceria entre a Unesco no Uruguai e o Instituto de Tecnologia Aplicada e Inovação (ITAI). A partir da experiência com esse projeto, que sinalizou o desconhecimento dos jovens quanto a diversas formas de violência, Karine viu em seu mestrado a oportunidade de contribuir para a compreensão do fenômeno da violência contra a mulher. Na sequência, optou por investigar, no doutorado, como os fatores de risco e de proteção associados à violência no namoro podem ser usados para desenvolver intervenções preventivas, campo ainda pouco explorado em pesquisas no Brasil.
EXPERIMENTO – Para desenvolver a intervenção, a pesquisadora se baseou em duas estratégias que considerou terem potencial para favorecer comportamentos de busca e oferta de ajuda na prevenção da violência no namoro: a educação de pares e a abordagem do espectador. Ambas apontam perspectivas para mudança de atitudes e desenvolvimento de habilidades que contribuem para diminuir fatores de risco e promover fatores de proteção. Além disso, estimulam o conhecimento sobre formas seguras e efetivas de intervenção quando adolescentes se tornam espectadores desses contextos críticos.
“A influência dos pares na adolescência é muito grande. Os amigos estão presentes em todas as etapas do namoro, desde o início, o desenvolvimento, a manutenção e a proteção, em caso de violência”, avalia Karine sobre o potencial das redes de amizades na prevenção da violência no namoro.
O experimento teve a participação de 42 alunos da rede pública de ensino de Brasília, com idades entre 16 e 18 anos, que integravam uma instituição de educação socioprofissional. Desse total, 22 receberam a intervenção, realizada em três encontros, nos quais foram abordados os temas relacionados. Entre eles, as causas e consequências desse tipo de violência, as características de namoros saudáveis e não saudáveis, a identificação das redes de amizade e o papel dos amigos na manutenção dos relacionamentos – sobretudo no apoio social e emocional, e na intervenção em casos de violência. Também foi incentivado o desenvolvimento de habilidades de empatia para favorecer comportamentos de ajuda enquanto potenciais espectadores de violência entre namorados.
VALIDADE – A eficácia da intervenção também foi avaliada em aspectos relacionados à prevenção. Para isso, foram aplicados a todos os estudantes questionários e escalas – uma delas inédita, construída especificamente para o estudo. A avaliação contemplou os seguintes quesitos: o índice de violência física, sexual e psicológica sofrida e perpetrada no namoro, a empatia dos adolescentes, o número de amigos envolvidos em situações como essa, a qualidade da amizade relacionada ao melhor amigo do adolescente, o comportamento de busca e oferta de ajuda para identificar pessoas que vivenciaram ou observaram contextos de violência no namoro, além de atitudes do espectador em resposta a essas conjunturas.
“No grupo que recebeu a intervenção, nós observamos como resultado mais importante no pós-teste o fato de os homens sofrerem menos ameaças no namoro, que é um dos tipos de violência psicológica”, comenta Karine. Também foi verificado efeito positivo no nível de empatia e na atitude do espectador em resposta à violência sofrida por amigos, além de melhorias na qualidade da amizade, no caso de homens que passaram pela intervenção.
Outro resultado obtido com a avaliação apontou que, após a intervenção da pesquisadora, houve um aumento de 50% da intenção dos participantes em ajudar pessoas que vivenciam o problema, além da redução de 50% dos relatos ouvidos por meninas sobre amigos envolvidos em violência no namoro. A maioria dos participantes da atividade expressou, ainda, satisfação com os conteúdos e atividades desenvolvidas nas sessões.
Segundo a pesquisadora, ainda são necessários novos estudos para analisar o potencial dessas ferramentas. Eles podem contribuir futuramente para ampliar o leque de estratégias de prevenção à violência nos relacionamentos íntimos, com a possibilidade de inclusão nos currículos escolares, centros de referência e serviços de saúde. “Quanto mais estratégias temos para prevenir, melhor. No primeiro momento, a ideia é que façamos outros testes de eficácia para termos mais evidências de que a intervenção alcançará de fato os efeitos esperados”, declara Karine Brito.