Desenvolvida no Instituto de Psicologia, a tese de doutorado faz um resgate histórico das vivências e memórias dessas mulheres

Marcelo Camargo/Agência Brasil

 

Pensar a subjetividade de mulheres negras em situação de rua, esse é o objetivo da tese desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura (PPGPsiCC/IP/UnB) defendida pela egressa Ana Luísa Moreira. O trabalho construiu-se com um olhar interseccional de gênero, raça e classe, além de ter bases epistemológicas da psicologia clínica e social.

De acordo com a autora, era importante refletir a maneira que a tese O lado de dentro da rua: o corpo-morada nas narrativas de mulheres negras em situação de rua contribuiria tanto para políticas públicas quanto para a psicologia. “Percebi principalmente nas sessões de pesquisa, na academia, uma ausência da discussão com mulheres em situação de rua, que são um número reduzido em relação aos homens”, ressalta.

Docente do departamento de Psicologia Clínica (PCL) e orientadora da tese, Maria Inês Gandolfo percebe a necessidade de colocar holofote sobre essa perspectiva e, a partir da vivência dessas mulheres, compreender as possibilidades em termos de cidadania.

“Normalmente fala-se de população em situação de rua, de modo geral, sem especificar. Dessa forma, as mulheres não recebem um olhar de fato para a singularidade delas”, completa Ana Luísa.

CORPO É MORADA – Com o intuito de refletir as dimensões subjetivas das mulheres em situação de rua que participaram da construção do trabalho, utilizou-se a metodologia mapa corporal. Nela faz-se um desenho do corpo em tamanho real na posição preferida, e as participantes preenchem o espaço com gravuras, colagens e escritos.

O método surgiu em alguns países africanos, principalmente na África do Sul, a partir do trabalho de um psicólogo e uma artista plástica, que, em meados dos anos 1990, começaram a trabalhar com mulheres infectadas com o vírus HIV. Nos anos 2000, o mapa corporal tornou-se metodologia de pesquisa por meio de duas estudiosas brasileiras, com trabalho voltado à vivência de imigrantes no Canadá.

“O mapa corporal fornece representação desses lugares de dores, de memórias e de como isso é vivenciado no corpo. No caso das mulheres negras em situação de rua, é intenso pensar no corpo delas como esse lugar de morada, porque, normalmente, há ausência de uma moradia física e o corpo é a única coisa que elas têm”, aponta Ana Luísa.

“Foi muito importante colocar na tese e comunicar essa outra forma de fazer a psicologia clínica, sentada na rua mesmo, e aconteceu em alguns momentos de eu imaginar ali como faria os atendimento com as mulheres”, relembra Ana Luísa Moreira. Foto: Luis Gustavo Prado/Secom UnB

 

A seleção das participantes para a tese ocorreu em saídas de campo, com a participação de discentes da graduação. Para estabelecer laços na rua, a doutora recebeu apoio de Juma Santos, ativista dos direitos da população em situação de rua e de profissionais do sexo.

 

“Fiquei em torno de um ano nas ruas para a formação de vínculos, porque o modo de aproximação era uma preocupação nossa, pois não queríamos repetir aquilo que acontece frequentemente com a população em situação de rua, de as pessoas extraírem delas o que desejam e depois irem embora. A ideia era fazer a pesquisa de forma cuidadosa, respeitosa e também oferecer uma contrapartida que seria o próprio trabalho”, explica a egressa de doutorado da UnB.

Para a orientadora, o método proporciona às mulheres negras em situação de rua um resgate à própria história e oportunidade de reflexão. “O fato de terem sobrevivido a tudo que viveram nas ruas e poder partilhar com testemunhas, faz com que elas se sintam orgulhosas do que alcançaram, e de ter a escuta de alguém. E a possibilidade de usar ferramentas visuais e artísticas transcende a questão da racionalização e do uso apenas da fala”, ressalta.

A aplicação da análise temática reflexiva nos dados colhidos foi proposta pela docente. “Uma coisa interessante do mapa corporal é que ele traz não só a narrativa, mas também o campo visual que é o próprio mapa, cada pessoa que fizer o seu mapa vai trazer algo diferente. E, dessa forma, passou a se discutir como seria interessante utilizar a análise temática reflexiva, porque isso tira um pouco daquele olhar frio e distante, direcionado apenas para classificar”, diz Ana Luísa.

INTERSECCIONAL E DECOLONIAL – Realizada em meio à pandemia de covid-19, a tese estruturou-se em uma perspectiva interseccional e decolonial. Segundo Ana Luísa, era importante não olhar para as mulheres como um ser universal, e compreender os diversos marcadores que as acompanham. Além disso, a pesquisadora buscou referenciais teóricos para além de autores europeus e norte-americanos, normalmente usados nos trabalhos acadêmicos.

Defendida em 2022, a tese, que recebeu menção honrosa no Prêmio Capes 2023, também perpassou pelas bases epistemológicas da psicologia clínica e social. “A psicologia clínica é imaginada, às vezes, como uma salinha com quatro paredes e alguém rico para pagar um psicoterapeuta. Isso acontece no senso comum porque é como se a psicologia clínica não fosse possível em lugares diferentes e para diversas pessoas”, explica Ana Luísa.

A orientadora acredita que o modo que a tese foi produzida é uma inspiração para discentes do curso de Psicologia. “O mapa corporal é um método interessante e, quando falamos sobre ele em uma sala de aula, estudantes logo querem fazer, entender melhor e aplicar em outros contextos”, diz.

 

*estagiária de Jornalismo na Secom/UnB.

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