Pesquisas verificam se peptídeo antioxidante auxiliaria em casos de doenças cardiovasculares, Alzheimer ou até na crioconservação de espermatozoides

Antonio Seben/Divulgação

 

Uma substância química produzida pela perereca da espécie Pithecopus azureus desde o momento que antecede sua transição da fase aquática, como girino, para a terrestre, como adulta, pode ajudar no tratamento de saúde em humanos, sobretudo em casos de doenças cardiovasculares, Parkinson ou Alzheimer. Esta é a hipótese que pretendem comprovar alguns pesquisadores da Universidade de Brasília, em parceria com outras instituições do Brasil e do exterior.

 

Em estudo publicado no Proceedings of the Royal Society B: Biological Sciences, considerado um dos mais importantes periódicos científicos do mundo e uma das revistas mais antigas ainda em atividade, o grupo relata a descoberta de um novo antioxidante, que pode ser promissor para aplicações médicas e biotecnológicas.

 

Excretado pelas glândulas granulares ou “glândulas de veneno” do anfíbio, o peptídeo (pequena proteína) da classe das triptofilinas batizado de PaT-2 é capaz de proteger o animal das adversidades ambientais que encontra no habitat terrestre, como temperatura, raios ultravioletas provenientes do sol e, sobretudo, oxigênio, que pode levar a formação de radicais livres, por exemplo.

 

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ESTUDOS – Primeiramente, os pesquisadores identificaram esse peptídeo na secreção cutânea das pererecas adultas da Pithecopus azureus. Depois, investigaram todas as fases da vida desses anfíbios, desde o ovo, e descobriram o momento exato em que o PaT-2 começa a ser produzido. Testes subsequentes feitos em células isoladas de camundongos apontaram os efeitos dessa proteína no organismo.

 

“A atividade antioxidante do PaT-2 foi confirmada em experimentos com células de mamíferos, em que usamos um fármaco para induzir uma superprodução de radicais livres e vimos que o PaT-2 foi capaz de diminuir essa produção”, conta o biólogo Daniel Moreira, especialista em antioxidantes e integrante do Núcleo de Pesquisa em Morfologia e Imunologia Aplicada (Nupmia) da Faculdade de Medicina (FM) da UnB.

 

Segundo ele, o objetivo principal da pesquisa era verificar qual o primeiro peptídeo que essa perereca produz na pele durante seu desenvolvimento e qual a função dele. Mas, respondidas essas perguntas, hoje o grupo verifica a possibilidade da utilização do antioxidante para promover ou reestabelecer a saúde e o bem-estar em humanos em determinados casos.

 

“Ainda é muito cedo para falar de utilização como tratamento. Porém, sabemos que muitas doenças, incluindo as neurodegenerativas e cardiovasculares, têm uma forte relação com o metabolismo redox”, afirma Daniel Moreira, ao explicar que se trata do conjunto de reações bioquímicas entre espécies reativas (oxidantes) e antioxidantes que ocorrem em nosso organismo a todo momento.

 

“Temos uma série de mecanismos de controle dessa rede de reações químicas que mantém o metabolismo redox em equilíbrio. Acontece que este equilíbrio é perturbado em uma série de condições patológicas. É a partir desta constatação que vem a ideia da utilização de peptídeos antioxidantes para reestabelecer o equilíbrio redox e tratar e/ou prevenir doenças em humanos”, declara o biólogo.

 

O professor da FM e coordenador do Nupmia, José Roberto Leite, lembra que a ciência vem avançando na associação de questões fisiológicas, desde refluxo, acidente vascular cerebral e doenças como Alzheimer ou Parkinson a estresses oxidativos que ocorrem nas células humanas. Mas, ressalta, a pesquisa da Universidade de Brasília em parceria com a Universidade do Porto (Portugal) e outras instituições dos dois países comprovou a atuação do peptídeo antioxidante para neuroproteção.

 

“Existem células auxiliares do sistema nervoso central chamadas de microglia, que ficam adjacentes ao neurônio e servem para alimentá-lo e protegê-lo. Quando possuem algum estímulo inflamatório, elas liberam substâncias chamadas citocinas, que podem causar dano ao neurônio. Nos últimos anos, já se sabe que se houver algo que iniba os radicais livres, essas células não secretam essa substância. Os antioxidantes atuam inibindo a inflamação, ou seja, o estresse oxidativo ROS (os radicais livres) das células acessórias do sistema nervoso central. Isso que mostramos”, detalha o docente.

Peptídeo antioxidante PaT-2 é produzido pela espécie de perereca Pithecopus azureus na transição da fase aquática para a terrestre. Foto: Antonio Seben/Divulgação

 

José Leite destaca que as triptofilinas descobertas na pesquisa podem ajudar no desenvolvimento de fármacos para estresse oxidativo de modo geral. No entanto, os estudos do grupo focaram apenas em modelos neurodegenerativos, como a doença de Alzheimer. 


“Nós publicamos conceito de prova para trabalhar com Alzheimer porque tínhamos financiamento no Brasil e em Portugal, mas pode ser usado também como outras vias de inibição de estresse oxidativo, como aplicação neuroalimentar, ou mesmo em doenças metabólicas cardiovasculares, diabetes tipo 2, e nós estamos seguindo essas outras linhas agora”, adianta.

 

A iniciativa recebeu aporte do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), no projeto coordenado pelo professor Massuo Kato, Vida-Frog. O objetivo deste é testar a capacidade das moléculas presentes na pele de anfíbios em mostrar propriedades antimicrobianas, antiparasitárias e neuroprotetoras.

 

DESDOBRAMENTOS – A portuguesa Alexandra Plácido, pós-doutoranda do projeto Vida-Frog, é uma das principais autoras do estudo recém-publicado em conjunto entre a Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e a UnB. A pesquisadora conta que as descobertas até o momento surpreenderam e também estimularam as equipes parceiras a seguir na investigação.

 

“Durante o estudo da atividade neuroprotetora do peptídeo, os resultados eram tão interessantes que suscitaram a curiosidade da equipe em perceber em que fase da vida daquele animal é que a molécula era produzida. Esta descoberta é fantástica”, avalia a pesquisadora.

 

Agora, o grupo que participou desta pesquisa pretende obter financiamento para escalonar a síntese do peptídeo PaT-2 e para avançar com os ensaios biológicos.

 

“Pretendemos prosseguir com esta linha de investigação para um melhor entendimento sobre o seu mecanismo de ação, mas também testá-lo noutros modelos, como os de doenças cardiovasculares e de criopreservação”, revela Alexandra Plácido.

 

OUTRAS APLICAÇÕES: COVID-19 – O coordenador do Nupmia reforça que hoje as equipes envolvidas estão com os desafios de produzir o peptídeo PaT-2 em larga escala, buscar outros modelos com quadros de estresse oxidativo e testar a atuação dessa proteína para a neuroproteção in vivo, ou seja, diretamente nas células de modelos vivos.

 

Em parceria com a Universidade Federal do Piauí (UFPI), os pesquisadores pretendem, inclusive, utilizar modelos animais com estado grave de covid-19, diabetes tipo 2 ou doenças metabólicas cardiovasculares.

 

“Quando ocorre a infecção com Sars-Cov-2, principalmente no pulmão ocorre uma cascata de eventos que geram estresse oxidativo e posterior liberação de citocinas inflamatórias. Este evento é um dos responsáveis pelos casos graves. Nas pesquisas mais recentes, tem-se pensado em uma alternativa terapêutica com antioxidantes como o que descobrimos que poderiam ser combinados com antivirais, de forma a atenuar seus efeitos colaterais em pacientes”, pontua José Leite.

 

Sobre a aplicação em casos de diabetes tipo 2, o docente informa que já há um edital aprovado do Sistema Único de Saúde (PP SUS) voltado para esse fim. “Em parceria com o Daniel Arcanjo na UFPI, estamos tentando levar medicamentos para diabetes tipo 2 com derivados do mesmo mecanismo. Esse é o início de uma nova linha de pesquisa em que se tem biodiversidade, inteligência artificial e estresse oxidativo (neuroproteção, entre outras) no mesmo eixo”, comenta.

Na TV, a pesquisadora Alexandra Plácido (Bioprospectum e Universidade do Porto). À mesa, o docente José Roberto Leite (FM/UnB), a médica Natália Paes Valadares (Genesis), a biomédica Ana Luisa (mestranda da UnB), a bióloga Íris Cabral (Genesis) e a médica Hitomi Nakagawa (diretora da Genesis). Foto: Divulgação

 

CRIOCONSERVAÇÃO – Outra frente que já virou realidade para o grupo de pesquisa é o estudo da triptofilina PaT-2 na crioconservação de espermatozoides no âmbito da fertilização in vitro. Ainda em janeiro de 2022, o Nupmia firmou parceria por tempo indeterminado com a clínica Genesis – Centro de Assistência em Reprodução Humana, no Distrito Federal, e a empresa de base tecnológica Bioprospectum, localizada no Parque Tecnológico da Universidade do Porto (UPTEC), para desenvolvimento de novos produtos na área de reprodução assistida.

 

“A substância que foi descoberta pode ser usada como antioxidante responsável para diminuir o estresse oxidativo causado nos espermatozoides durante seu congelamento. Com isso, pode aumentar a eficiência da fecundação in vitro”, acredita o pesquisador José Leite.

 

De acordo com ele, essa parceria prevê que alguns funcionários da clínica, médicos e biomédicos farão pós-graduação na UnB nos projetos relacionados e ficarão como cofinanciadores.

 

Duas das ideias do grupo hoje são que o peptídeo produzido pela perereca P. azureus pode ser capaz de aumentar a vida útil do espermatozoide congelado ou ainda de deixá-lo mais ativo no processo de fertilização in vitro.

 

“A princípio seriam as duas coisas! Diminuindo o estresse oxidativo, a amostra seria congelada com PaT-2 e, se tiver efeito, teríamos um número maior de espermatozoides viáveis e mais ativos”, esclarece o professor. Caso dê certo, a UnB e a Genesis poderão registrar patente com cotitularidade e posterior transferência de tecnologia para ampla utilização no mercado mundial.

 

O biólogo Eder Barbosa, egresso do doutorado em Biologia Animal com experiência pós-doutoral no Instituto de Química da Universidade de Brasília, julga que muitas vezes os anfíbios são subestimados pelo público em geral, mas a Pithecopus azureus, conhecida como “perereca de árvore” pelas comunidades locais, é um exemplo do quão importantes esses bichos podem ser.

 

“Esse lindo animalzinho habita praticamente toda a região do Centro-Oeste (inclusive as margens do lago Paranoá, em Brasília) e poucas pessoas reconhecem sua vocalização tão sutil. Esse trabalho descreve aspectos interessantíssimos sobre a ecologia, a evolução e o potencial biotecnológico para a saúde humana, de maneira que se faz uma oportunidade para que cientistas e não cientistas vislumbrem o quão fantásticos são esses animais”, opina Eder Barbosa, hoje em pós-doutoramento na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e pesquisador colaborador do Nupmia.

 

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